terça-feira, 10 de junho de 2008

TESE SOBRE AUX. DE NECROPCIA

MINISTÉRIO DA SAÚDE
FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ
ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA
Ossos do ofício
Processo de trabalho e saúde
sob a ótica dos funcionários do
Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro
Autor: Lorenzo Aldé
Orientadora: Maria Cecília de Souza Minayo
Dissertação de mestrado defendida em 31 de março de 2003
Dedico este trabalho
A Carlo e Suzana,
meus pais,
pelo amor e companheirismo
com que se fazem presentes,
mesmo distantes,
e pelas oportunidades
que me ofereceram ao longo da vida,
e que me fizeram ser quem sou.
A Joana e Helena,
que me sustentam
com seu enorme amor,
e sustentaram heroicamente
também este trabalho.
Meus amores, minha felicidade.
Ao meu segundo filho,
mais uma vida que chega
para renovar a minha.
À alegria de viver.
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Agradecimentos
Ao professor Otávio Cruz Neto (in memoriam), pela acolhida em uma nova área.
À professora Maria Cecília de Souza Minayo, pela generosidade e sensibilidade acadêmica e humana.
À professora Suely Ferreira Deslandes, pelo vital incentivo para que as idéias deste trabalho tomassem forma.
Ao professor José Carlos Rodrigues, pela disponibilidade de ler e comentar o projeto.
Ao compadre Bernardo Amado Figueiredo, pelo empréstimo, na hora certa, da capacidade de planejamento que me faltava.
À equipe de pesquisadores e bolsistas do Claves, pelo aprendizado conjunto na pesquisa sobre a Polícia e no trabalho de campo no IML: Edinilsa Ramos de Souza, Patrícia Constantino, Romeu Gomes e Simone Gonçalves de Assis; Cátia da Cruz Falcão, Fabiano S. Siqueira, Patrícia Toledo e Verônica Almeida dos Anjos.
A Juaci Vitória Malaquias, Nilton César dos Santos, Marcelo Silva da Motta, Cristina Maria Peres do Nascimento e toda a equipe e amigos do Claves.
A Alessandra Aldé, Alexandre Giovanelli, Álvaro Ferraz de Abreu, Anna Carolina Cabral de Andrade da Matta Machado, Carmen Aurélia Cabral de Andrade, Eduardo Coutinho, Fernando Derenuson, Jorge Coelho, Luciana Brazil Lenz César, Maria Kemper, Miriam Chnaiderman e Roberto Argento, pelas dicas e referências bibliográficas, e a Lourdes Grzybowski, pelo apoio irrestrito.
À Direção e funcionários do IML do Rio de Janeiro, pela atenção, disponibilidade, paciência e simpatia com que me receberam e trataram durante todo o período em que acompanhei seu trabalho. Sem sua colaboração esta pesquisa seria inviável. Divido com eles todos os méritos que este estudo possa ter, e peço-lhes antecipadamente desculpas por possíveis incorreções ou omissões.
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Resumo
Esta dissertação analisa as condições de trabalho dos funcionários do Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro (IML Afrânio Peixoto) e discute as possíveis repercussões desse trabalho na saúde física e mental dos profissionais.
Por meio de instrumentos quantitativos (questionário) e qualitativos (entrevistas e observação participante) de coleta de dados, o estudo sistematiza relatos e percepções dos profissionais a respeito de diversos aspectos relativos ao processo de trabalho e à saúde: a identidade institucional do IML, a missão policial, a formação inicial e a capacitação em serviço, as condições materiais e estruturais disponíveis, a carga horária, os outros empregos, o salário, a satisfação pessoal, as relações hierárquicas, os riscos e danos físicos e psicológicos a que estão expostos, a imagem que a sociedade tem do IML e da Polícia, as compensações e vantagens que o trabalho oferece.
A pesquisa levanta questões relevantes tanto para uma discussão institucional sobre o papel do IML e da Polícia Técnica na reformulação da Segurança Pública, quanto para os estudos sobre a relação entre o processo de trabalho e as condições de saúde física e mental dos sujeitos.
Palavras-chave: Saúde ocupacional, violência, política social, medicina legal, satisfação pessoal.
Abstract
This study analyzes the conditions of work of the employees of Instituto Médico-Legal in Rio de Janeiro (IML Afrânio Peixoto) and it’s possible repercussions in the physical and mental health of these professionals.
Through quantitative (questionnaire) and qualitative (interviews and conversation analysis) data gathering, this dissertation systemize life stories and perceptions of the professionals regarding many different aspects relative to the process of working and maintaining the health: the institutional identity of the IML, the Police mission, the initial formation and the qualification in service, the material and structural conditions available, the working hours, the free-lance jobs, the income, the personal satisfaction, the hierarchic relations, the physical and psychological risks and damages that they are exposed to, the image that the society has of the IML and the Police, the rewards and advantages that the work offers.
The research raises important questions for an institutional debate on the role of the IML and the Police Technique in the reformulation of the Public Security, and also for the studies on the relation between the working process and the physical and mental health conditions of the subjects.
Key-words: Occupational Health, Violence, Public Policy, Legal Medicine, Satisfaction.
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Sumário
I Apresentação ...................................................................................... p. 7
II O Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro ..................................p. 16
II.1 Origens ....................................................................................p. 16
II.2 O IML hoje ............................................................................. p. 26
III Metodologia ...................................................................................... p. 33
III.1 Observação participante ......................................................... p. 42
III.2 Referências teóricas ............................................................... p. 51
IV Resultados quantitativos: os questionários ................................... p. 61
IV.1 Situação profissional .............................................................. p. 61
IV.2 Informações pessoais ............................................................. p. 66
IV.3 Informações socioeconômicas ............................................... p. 69
IV.4 Satisfação ............................................................................... p. 73
IV.5 Trabalho e saúde .................................................................... p. 75
V Resultados qualitativos: as entrevistas ........................................ p. 101
V.1 Processo de trabalho ............................................................. p. 103
V.2 Percepções de saúde ............................................................. p. 120
VI Conclusões ..................................................................................... p. 145
VII Referências bibliográficas .............................................................p. 157
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Figuras
Figura 1 – Cargo na Polícia (p. 61)
Figura 2 – Tempo de serviço (questionários) (p. 64)
Figura 3 – Escalas de trabalho (p. 65)
Figura 4 – Distribuição por idade (p. 66)
Figura 5 – Distribuição por sexo (p. 67)
Figura 6 – Escolaridade (p. 68)
Figura 7 – Renda líquida na Polícia (em R$) (p. 69)
Figura 8 – Renda familiar líquida (em R$) (p. 70)
Figura 9 – Destinação da renda familiar (em R$) (p. 70)
Figura 10 – Tempo gasto no transporte (p. 72)
Figura 11 – Grau de satisfação (p. 73)
Figura 12 – Uniforme/ Material de necropsia/ Material para segurança biológica (p. 76)
Figura 13 – Atividades teóricas e práticas: Tempo/Adequação (p. 78)
Figura 14 – Trabalho, sem folga, depois do plantão (p. 80)
Figura 15 – Férias mais recentes (p. 81)
Figura 16 – Riscos de ser policial (p. 83)
Figura 17 – Rapidez/ Intensidade/ Esforço/ Estresse (p. 84/85)
Figura 18 – Ambiente e relações hierárquicas (p. 88/89)
Figura 19 – Grau de satisfação no trabalho (p. 90)
Figura 20 – Satisfação em relação a diferentes aspectos do trabalho (p. 91-93)
Figura 21 – Consumo de bebidas alcoólicas (p. 95)
Figura 22 – Tempo de serviço (entrevistas) (p. 101)
Ilustração
Anatomia del corpo humano..., de Juan Valverde de Amusco (p. 146)
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I Apresentação
Esta dissertação é resultado de uma pesquisa que teve como objetivos conhecer o processo de trabalho no Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro, em especial nos setores de Óbitos e Necropsia, e discutir de que maneira esse processo de trabalho pode estar relacionado com a saúde dos profissionais.
O Instituto Médico-Legal Afrânio Peixoto (IMLAP, ou simplesmente IML) é o órgão da Polícia Civil do Rio de Janeiro responsável pela realização de perícias médicas e pela emissão de laudos para subsidiar as investigações e o julgamento de processos criminais sobre agressões físicas, acidentes, estupro, atentado violento ao pudor, tentativas de homicídio, homicídios consumados e suicídios.
A oportunidade de entrar em contato com o trabalho do IML surgiu no âmbito da pesquisa "Condições de trabalho e saúde dos policiais civis do Estado do Rio de Janeiro", desenvolvida pelo Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli (Claves), da Fundação Oswaldo Cruz. O IML foi um dos 38 órgãos da Polícia Civil sorteados para compor a amostra da pesquisa, que tem como principais objetivos conhecer os diversos processos de trabalho existentes nos órgãos policiais (divididos, para efeito de análise, em administrativos, técnicos e operacionais) e investigar sua possível relação com as condições de saúde dos profissionais.
A pesquisa parte da hipótese de que o policial civil é, a um só tempo, "agente produtor e vítima da violência" (MINAYO, 2000). De fato, no vertiginoso crescimento da violência urbana nas décadas de 80 e 90, as instituições policiais passaram a ter sua atuação questionada tanto pela opinião pública quanto por estudos científicos (Kant de Lima et. al.).
Aspectos relacionados à Segurança Pública vêm ganhando a atenção do campo da Saúde, uma vez que a morbimortalidade por violência ("causas externas", segundo a Classificação Internacional de Doenças, CID) assumiu proporções epidêmicas. As causas externas já ocupam o segundo lugar no perfil geral na mortalidade dos brasileiros e o primeiro entre adolescentes e jovens adultos do sexo masculino, em especial nas
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grandes cidades e vitimados por armas de fogo (SOUZA, 1995). Segundo o DataSUS, em 1998 foram 25 mil os brasileiros mortos por armas de fogo.
Neste contexto, a Saúde Pública desempenha um importante papel na tentativa de desvendar os processos sociais que culminam em violência, identificar suas várias formas de manifestação, conhecer seus agentes e vítimas, estudar as representações sociais que a traduzem e justificam, propondo caminhos para a prevenção da violência (MINAYO e SOUZA, 1999). Para lidar com um fenômeno assim multifacetado, os estudos de saúde passaram a ser construídos como experiências interdisciplinares, em que várias áreas de saber enfocam uma dinâmica social na tentativa de compor um olhar mais complexo e, portanto, mais próximo da realidade dos grupos envolvidos.
A Pesquisa "Juventude, Cidadania e Violência no Rio de Janeiro" foi uma dessas iniciativas. Analisou as manifestações da violência na vida e nas representações do grupo social mais atingido por ela: os jovens. A pesquisa revelou um dado preocupante:
Mais do que o crime organizado, a polícia é apontada nos depoimentos e nas narrativas de rapazes e moças como o agente principal da violência no Rio de Janeiro. (grifo dos autores) (MINAYO et. al., 1999, p. 162)
A instituição que tem por missão manter a ordem pública, a moralidade, a saúde pública, e assegurar o bem-estar coletivo (SILVA apud. MINAYO, 2000), é vista, por boa parte da sociedade, como sinônimo de amoralidade, ameaça à saúde, à vida, ao bem-estar coletivo. A Polícia sintetiza, como nenhuma outra instituição, os paradoxos da violência no Brasil.
O estigma que hoje cerca as instituições policiais e como decorrência atinge seus profissionais pode ter conseqüências socioculturais mais perversas do que os fatos concretos que o justificam. Tomando o todo pela parte e transformando a realidade — histórica e dialética por definição — em rótulo consumado e reproduzido ad nauseum pela mídia, a sociedade acaba por alimentar o monstro que a aterroriza. Não se reconhece a Polícia como produto das relações sociais, e assim, além de decretar a violência como um problema insolúvel, exclui-se do policial os direitos de cidadania, dificultando imensamente sua missão: como defender uma sociedade que me rejeita?
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O único antídoto para desconstruir estigmas como este é o conhecimento. As ciências sociais têm o dever de restituir à realidade suas nuances complexas, promovendo leituras profundas de fenômenos superficializados pela mídia, pela opinião pública, pelo senso comum.
É crescente e tem cada vez maior repercussão a produção acadêmica voltada a discutir a segurança pública e a violência urbana, enfatizando principalmente a questão dos direitos humanos e da inclusão social. Com a participação de movimentos da sociedade civil, busca-se monitorar a atividade policial e desvendar seus abusos, sua relação com a criminalidade e sua responsabilidade no crescimento da violência. No entanto, poucas iniciativas têm se esforçado no sentido de conhecer a realidade interna da Polícia, a vida dos policiais, como eles lidam com a profissão e com a forte identidade social que carregam. O documentário Notícias de uma guerra particular, de João Moreira Salles (1999), é um exemplo bem-sucedido, abordando o tema da violência no Rio de Janeiro pela perspectiva dos principais atores envolvidos, dos dois lados do conflito: policiais e traficantes. Protagonistas de uma batalha diária, oprimidos por uma rotina desgastante e desregrada, imbuídos da crueza do lema "matar ou morrer" levado às últimas conseqüências, esses sujeitos são igualmente marginalizados pela sociedade dita organizada.
Faz-se necessário, pois, dedicar atenção especialmente a esse enfoque: o que se passa na vida dos policiais e como funcionam suas representações sociais sobre a profissão. Esse foi um assunto sempre submerso e sem visibilidade na comunidade acadêmica, e por isso não foram construídos conhecimentos suficientes acerca das dinâmicas sociais em que estão inseridos a Polícia e seus profissionais. É preciso conhecer as condições de vida e de trabalho dos policiais, compreender como se constituem sua identidade social, as relações hierárquicas na corporação e nos diversos órgãos policiais, o relacionamento com a sociedade, a violência a que estão submetidos, os riscos a que estão sujeitos, os danos à saúde física e mental provocados pela rotina de trabalho.
Deve-se partir da constatação de que as categorias "a Polícia" e "o policial" não passam de definições formais, para as quais não existe uma referência real homogênea. Dentro da Polícia Civil existem realidades bastante distintas no que diz respeito às
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lógicas de produção de serviços, às condições de trabalho e saúde de seus profissionais. As percepções e vivências de riscos à saúde dependem da função desempenhada pelo profissional, do seu ambiente de trabalho, das relações travadas com os colegas e com os superiores, das condições técnicas e materiais disponíveis, bem como do imaginário social sobre o trabalho e das suas próprias representações sobre a identidade profissional, entre outros elementos intervenientes.
Portanto, se é verdade que se pode considerar os policiais, de uma maneira geral, como um grupo de alta vulnerabilidade — entendendo que esta qualificação aponta para uma maior exposição a riscos à saúde ou à vida (MINAYO, 2000) —, também é verdade que os riscos se manifestam de forma diferenciada em cada um dos órgãos e grupos que compõem esse segmento profissional.
A função central do trabalho de um papiloscopista do Instituto de Identificação Félix Pacheco (IFP) consiste em examinar e classificar, com o auxílio de uma pequena lente, centenas de impressões digitais mensalmente, em um ambiente cercado por papéis velhos, empoeirados e amarelecidos. Já as atividades de um inspetor de Delegacia de Polícia podem incluir, por exemplo, investigações em áreas cercadas de favelas, onde o comércio de drogas ilícitas é mantido por grupos fortemente armados, que aterrorizam a população local. Esse inspetor cumpre plantões de 24 horas de trabalho ininterrupto, por 72 horas "de descanso", utilizadas na verdade para complementar a renda familiar em outro emprego. Por sua vez, um perito legista, também funcionário da Polícia Civil, realiza exames de corpo de delito e necrológicos no IML uma vez por semana, fazendo cirurgias em hospitais públicos, atendendo em uma clínica privada ou lecionando em cursos universitários no restante do tempo livre. Sua identidade profissional e vivência social vinculam-se principalmente à Medicina e à vida acadêmica. Ele considera o trabalho na Polícia como um serviço prestado a uma instituição com a qual não se identifica em absoluto.
Esses são exemplos da diversidade de atividades que ocorrem no interior da Polícia Civil. A complexidade organizacional e funcional dos órgãos que compõem esta instituição não permite que ela seja analisada a partir de uma identidade homogênea. Tal dificuldade estende-se aos profissionais a ela vinculados, que só grosso modo podem ser classificados como "policiais". Nem mesmo as categorias profissionais formalmente definidas pela Polícia possuem grande poder explicativo e analítico:
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existem papiloscopistas tanto no IFP quanto no IML; delegados não necessariamente trabalham em Delegacias; auxiliares de cartório (os antigos escrivães ou escreventes) também estão espalhados por diversos órgãos da instituição, dos administrativos às delegacias.
Raros estudos conseguem ter a abrangência suficiente para abordar uma instituição tão grande e diversa como a Polícia Civil do Rio de Janeiro, com tudo o que isto representa de desafio teórico, operacional e político. Um dos méritos da pesquisa "Condições de trabalho e saúde dos policiais civis do Rio de Janeiro" (Claves/Fiocruz) é justamente iluminar a complexidade e diversidade dessa instituição, abrindo caminho para novos estudos científicos, que poderão se dedicar a enfoques mais profundos e específicos, tendo como objeto as diversas situações de trabalho presentes na Polícia e em seus vários órgãos.
É o que pretende esta dissertação: contribuir para a discussão a respeito de um órgão policial pouco conhecido e pouco valorizado, tanto pela sociedade quanto no interior da própria Polícia Civil.
O estigma carregado pelo IML aos olhos da sociedade é diferente do estigma da Polícia. Até porque as pessoas sequer associam uma instituição à outra. Não se sabe que o IML está subordinado à Polícia Civil porque não se deseja saber nada sobre o IML. Ninguém quer conhecer, de preferência nem passar perto do IML. A identidade institucional é "amaldiçoada" pela natureza do trabalho, pela intimidade que este tem com a morte, tabu cultural e histórico difícil de romper (RODRIGUES, 1983). O ambiente causa medo, nojo, incômodo. É interessante, e mesmo divertido, observar a reação dos amigos e conhecidos para quem relato o meu objeto de estudo. Os comentários invariavelmente revelam surpresa e incompreensão: como alguém pode escolher como tema o IML? Pesquisar não deveria ser um ato também movido pelo prazer? "Tem gosto para tudo!", dizem alguns, em tom de brincadeira. Em outras palavras: como posso me interessar por este lugar desagradável, execrado, excluído da sociedade?
Assim, incorpora o IML a carga de dois estigmas: por um lado, a identidade policial, por outro, a identificação com a morte. Rejeitada pela sociedade, a instituição também é marginalizada dentro da Polícia Civil. Primeiro, porque integra a Polícia
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Técnica (juntamente com o IFP e o Instituto de Criminalística Carlos Éboli, ICCE), que presta apoio científico à investigação policial mas não está no centro das prioridades das políticas de Segurança Pública, mais voltadas à Polícia Operacional e sua custosa estrutura de investigação e repressão (delegacias, veículos, armamento, munição etc.). Segundo, porque pela especificidade do trabalho os profissionais do IML não são vistos (e muitos sequer se vêem) como policiais.
Eu já fui depor uma vez na Delegacia Legal, 5ª Legal, eu escutei uma piada, um colega pegar minha carteira e falar para o outro assim: "O cara é açougueiro". Me chamou de açougueiro. Quer dizer, além de atacar um colega de profissão, que ele é tão polícia quanto eu — eu tenho carteira, tenho arma, ele tem carteira e tem arma também, somos colegas, ele tem contracheque, eu tenho contracheque — mas você nota uma espécie de... que não me abala em nada! Denigre ele, que não tem a visão que a Polícia Técnica é importante também. Muito importante. (Auxiliar de necropsia)
Por fim, há ainda a questão da morte, que contribui para a discriminação sentida pelos profissionais do IML no interior da Polícia.
O IML, o nome até espanta, Instituto Médico-Legal, então o pessoal tem pavor, até a própria Polícia tem pavor, eles não vão lá. (Auxiliar de necropsia)
E, no entanto, o trabalho do "patinho feio da Polícia Civil" (definição de um membro da Diretoria) reveste-se de tamanha importância que extrapola a área da Segurança Pública, pois se relaciona com questões de grande interesse sócio-sanitário. No IML está localizado o "ponto final" das expressões sociais violentas. A esta instituição cabe receber e identificar suas vítimas, detectar os diversos tipos de violência presentes em nossa sociedade, auxiliar a elucidação de suas causas, produzir dados que vão compor as informações estatísticas sobre as "causas externas" de morbimortalidade. A qualidade dessa informação é fundamental para a formulação de políticas públicas destinadas a prevenir as diferentes formas de violência. No entanto, estudos demonstram que todo o processo de produção, registro, sistematização, disseminação e utilização dessa informação para a definição de políticas acontece de forma desarticulada e ineficiente (NJAINE e cols., 1997).
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Estudar a atuação do IML também interessa à Saúde Pública porque a instituição abriga, em seus quadros, profissionais da saúde, realizando exames clínicos em pessoas agredidas ou acidentadas e exames necrológicos em vítimas fatais da violência. O IML está historicamente vinculado ao campo da Saúde e da Medicina Legal, e uma discussão pertinente diz respeito ao seu caráter institucional, que para muitos deveria ser autônomo da Polícia, passando a funcionar como um órgão da Saúde, da Justiça, ou como uma autarquia.
Finalmente, estudar o IML interessa ao campo da Saúde Pública no que concerne às condições de saúde dos seus profissionais, o primeiro pré-requisito para se exigir, de qualquer instituição, produtividade e eficiência. Se a saúde física e mental desses trabalhadores é prejudicada pelo processo de trabalho a que estão sujeitos, não há como esperar que se comprometam em melhorar a atuação do IML, em contribuir para uma Polícia mais eficiente, em beneficiar a articulação entre Saúde e Segurança Pública, em discutir questões de natureza política e institucional.
Eles são os sujeitos desta pesquisa e as principais fontes de conhecimento às quais tive acesso para compreender o que é e como funciona o IML.
Tenho agora alguns desafios consideráveis pela frente. Em primeiro lugar, pretendo levar a público, o mais claramente possível, informações sobre o IML, sua história, seu funcionamento, o trabalho de cada setor e a relação entre os setores, as condições estruturais e materiais de trabalho, as escalas, os profissionais envolvidos. O objetivo é sistematizar informações que são conhecidas apenas pelos que ali trabalham. Isto será feito no capítulo II, O Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro.
Em segundo lugar devo lançar luzes sobre as percepções dos profissionais. A riqueza das entrevistas traz à tona informações sobre os mais variados temas, e vejo-me com a missão de compreender e reinterpretar o que essas pessoas pensam sobre o trabalho, sobre a identidade policial, sobre o IML estar vinculado à Polícia, sobre trabalhar em contato com a morte, sobre atender famílias que perderam um parente em circunstâncias violentas, sobre o estresse gerado por esse trabalho, sobre as condições materiais disponíveis, sobre seus outros empregos, sobre sua qualidade de vida, seu salário, sua satisfação pessoal, sobre a imagem que a sociedade tem do IML e da
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Polícia, sobre os riscos que correm, sobre as compensações e vantagens que o trabalho oferece. O grande desafio é conseguir tratar de cada um desses temas, e outros mais, sem incorrer na reprodução exaustiva de todas as falas interessantes, o que resultaria em um amontoado repetitivo de citações e tornaria a leitura cansativa, o conteúdo um tanto caótico e meu próprio trabalho uma mera transcrição acrítica.
Cabe-me, portanto, o papel de crítico: sistematizar e interpretar essas informações, para que suas conexões possam fazer algum sentido, ou para que ao menos eu apresente sentidos a serem questionados, debatidos, refutados. Assumir este papel é assumir o risco de manipular pensamentos e sentimentos alheios, com o objetivo de comprovar hipóteses pessoais e, o mais grave, externas ao trabalho do IML. Se o risco é inevitável, devo tratar de revertê-lo em fator benéfico, como uma constante exigência ao cumprimento dos princípios éticos que me orientam, de fidedignidade às percepções dos sujeitos e à minha própria observação em mais de um ano de contato com o campo. Tratarei no capítulo V dos Resultados Qualitativos.
Contar ainda com dados quantitativos é uma possibilidade valiosa, que servirá de baliza para nortear os caminhos interpretativos e evitar conclusões precipitadas ou generalizações que extrapolem o real. Se me dão esta segurança, representam eles também um grande desafio: o impressionante volume de dados quantitativos produzido pela pesquisa do Claves, com os resultados de 123 perguntas, muitas divididas em subitens, teve que ser reduzido e adaptado aos objetivos bem mais modestos deste estudo. Ainda assim, o desejo de não perder a riqueza das informações motivou um recorte ainda amplo, com 58 questões a serem analisadas. Além disso, a interpretação dos dados quantitativos está longe de ser objetiva ou unívoca, inaugurando uma série de interrogações que terei o prazer de apresentar, para posteriores debates ou novos estudos. O capítulo IV é aquele destinado aos Resultados Quantitativos.
Mas antes das informações e análises, descreverei a metodologia que deu origem a este estudo e possibilitou a construção de seus instrumentos, comentarei os referenciais teóricos que me orientam nas análises qualitativas e falarei de minha própria experiência e observações no campo. Isto será feito no capítulo III, Metodologia.
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O capítulo VI, Conclusões, busca as sínteses possíveis entre as informações quantitativas e qualitativas, com a expectativa de consolidar as descobertas mais gerais sobre os principais temas tratados. Se a pesquisa tem alguma ambição social e política, esta é a de contribuir com informações que possam subsidiar ações concretas voltadas à melhoria das condições de trabalho dos profissionais do IML. Pretendo encaminhar para as autoridades constituídas um diagnóstico de situação relatando as condições materiais e técnicas em que as atividades institucionais se realizam, apresentando as percepções de saúde manifestadas pelos profissionais envolvidos, e sugerir propostas de mudanças. Essas propostas também serão apresentadas no capítulo final.
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II O Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro
Pouco se produziu a respeito da história do Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro. Não é uma tarefa simples encontrar referências bibliográficas que informem sobre o início das atividades de Medicina Legal no estado, ou que falem das mudanças institucionais, estruturais e políticas ao longo do século XX, para que possamos compreender a sucessão de conjunturas históricas que levaram o IML a ser o que ele é hoje.
Na falta de uma publicação ou pesquisa voltada a resgatar essa história de mais de um século, fontes diversas — antigas publicações da Polícia, notícias na imprensa e relatos de funcionários mais experientes da casa — ajudaram a iluminar alguns pontos importantes na trajetória do IML, que merecem ser relatados. Um pequeno artigo sobre a história da Medicina Legal, do professor Hygino de Carvalho Hércules, da UFRJ (1988), foi uma referência preciosa, traçando as origens dessa especialidade no Brasil, enfatizando a importância dos investimentos acadêmico e científico para os avanços nas áreas da Justiça e Segurança, relatando as idas e vindas políticas e institucionais do IML na primeira metade do século passado.
II. 1 Origens
A associação entre medicina e direito já era relatada em alguns documentos da Antigüidade, como o Código de Hammurabi (Babilônia, séc. XVIII a.C.), que estabelecia uma relação jurídica entre médico e paciente. O Código de Manu (Índia, entre 1300 e 800 a.C.) impedia que loucos, crianças, velhos e embriagados fossem ouvidos como testemunhas. No Ocidente, interdição semelhante só aparece no Império Romano, com a Lei das XII Tábuas (449 a.C.). A morte do imperador Júlio César resultou no primeiro registro de exame necrológico em vítima de homicídio de que se tem notícia, em 44 a.C. Seu corpo fora golpeado 23 vezes, sendo identificado apenas um golpe mortal.
Com o tempo, disseminou-se o reconhecimento da importância do testemunho médico para o julgamento de crimes. Mas foi no período Renascentista que a medicina legal começou a difundir-se de fato, com a promulgação de leis e a produção de
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relatórios, estudos e tratados. A "Constituinte Criminalis Carolina", lançada por Carlos V, da Alemanha, em 1532, é considerada o grande passo para a obrigatoriedade da necropsia em casos de mortes violentas, lançando as bases para tornar a medicina legal uma disciplina autônoma.
Do século XVI ao século XVIII, principalmente na Itália e na Alemanha, a participação das universidades na avaliação de exames médico-legais gerou grande interesse científico e a produção de importantes obras sobre a Medicina Legal e especialidades afins. Na França, a medicina legal ganhou maior repercussão no início do século XIX, com a criação das primeiras cátedras destinadas a ensiná-la. Coincidindo com o crescimento das principais cidades européias e com a relevância social que passou a merecer a Medicina Pública, a medicina legal teve, no século XIX, o seu "período de ouro".
No Brasil, a primeira obra médico-legal foi publicada em 1814. Apenas em 1830, com o nosso primeiro Código Penal, foi adotada a obrigatoriedade do juiz recorrer à avaliação do médico para embasar sua sentença em casos de violência. Em 1832 foi instituída a perícia profissional, com a regulamentação do processo penal e o estabelecimento de regras para os exames de corpo de delito. No mesmo ano, as antigas escolas médico-cirúrgicas da Bahia e do Rio de Janeiro, criadas por D. João VI, foram transformadas, por decreto, em faculdades de medicina oficiais, sendo criada uma cadeira de Medicina Legal em ambas. Datam dessa época os primeiros estudos em Medicina Legal do país.
Em 1856, a Medicina Legal oficial foi transferida da autoridade judiciária para a Polícia, com a criação de uma assessoria médica junto à Secretaria de Polícia da Corte. A assessoria era composta por dois médicos efetivos, ligados à Polícia, e dois consultantes, professores de medicina legal da faculdade, responsáveis principalmente pelos exames toxicológicos. No mesmo ano foi criado o primeiro necrotério do Rio de Janeiro, no depósito de mortos da Gamboa, onde se guardavam cadáveres de escravos, indigentes e presidiários. Em 1877, o necrotério oficial seria liberado para a faculdade promover aulas práticas de Medicina Legal.
O advento do Brasil República trouxe novas e profundas modificações institucionais para o serviço de medicina legal da Polícia. Em 1900, a assessoria médica
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foi transformada em Gabinete Médico-Legal. Dois anos mais tarde, o médico, literato e criminologista Afrânio Peixoto, discípulo de Nina Rodrigues (o maior professor brasileiro de medicina legal do século XIX), apresentou um plano de reformulação do Gabinete Médico-Legal da Polícia, com o objetivo de implantar as mais avançadas normas para a prática de medicina legal utilizadas na Alemanha. Segundo Hércules (1988), Afrânio Peixoto "clamava então que ‘as monstruosidades alcunhadas de termos de autópsias, autos de corpo de delito confusos, desordenados, incoerentes, dando um triste atestado de incompetência profissional e prejudicando os interesses da Justiça’ não poderiam continuar a distorcer a aplicação da lei penal". Um decreto federal de 1903 legalizou a ampla reforma proposta por Afrânio Peixoto, recebida com entusiasmo pelos maiores especialistas italianos e franceses, que sugeriram sua aplicação também em seus países.
A efetivação do previsto em lei, porém, não se fez sentir. As perícias continuavam a ser feitas de forma incompleta, desorganizada e personalista (médicos sem especialização assinavam perícias, indicados por amigos políticos ou magistrados). Novas pressões de Afrânio Peixoto e de outros importantes professores de Medicina Legal resultaram no decreto 6.440, de março de 1907, que transformou o Gabinete em Serviço Médico-Legal. Afrânio Peixoto foi nomeado seu primeiro diretor.
As reestruturações promovidas por Afrânio Peixoto podem ser consideradas o marco zero da moderna Medicina Legal brasileira. O jornal Correio da Manhã, em 1949, comentaria a importância daquelas reformas:
Para mostrar o vulto dessa empresa, basta lembrar que até poucos anos antes daquela data, como ainda agora acaba de ser repetido, os loucos que apresentavam reações anti-sociais, reclamando cuidados da polícia, eram remetidos como criminosos comuns à Casa de Detenção, onde permaneciam em promiscuidade com os delinqüentes de toda espécie. Foi também nessa época objeto de cuidados especiais a organização dos serviços de toxicologia e quantos outros possam interessar o esclarecimento da justiça em assuntos dessa natureza. Eram precárias as condições materiais do ambiente em que se vinham desenvolvendo essas atividades, vendo-se certos serviços, de magna importância, mal aparelhados ou de todo reduzidos a um ambiente que não satisfazia às exigências mais elementares.
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Ainda que o jornal registre o fato de se repetirem, na década de 40, arbitrariedades contra os "loucos" já abolidas há tempos (aliás, o tratamento digno aos doentes mentais é até hoje objeto de reivindicações, sujeito a avanços e retrocessos), o que se há de ressaltar é que a Medicina Legal passou por importantes transformações no início do século XX. Os ventos do progresso cientificista e higienista, vindos da Europa, sopravam forte na Saúde Pública brasileira. O Serviço Médico-Legal mantinha estreitas relações com as universidades, beneficiando-se do momento favorável que viviam a Medicina e a Saúde Pública. Se o século XIX foi o período de ouro da Medicina Legal no Ocidente, pode-se dizer que, no Brasil, ela nasceu de fato nas primeiras décadas do século XX.
Com sua atuação política, acadêmica e científica, Afrânio Peixoto (1876-1947) é até hoje considerado, ao lado de Nina Rodrigues, um dos patronos da Medicina Legal no Brasil. Seu nome batiza o IML do Rio de Janeiro: Instituto Médico-Legal Afrânio Peixoto (IMLAP).
A designação "Instituto Médico-Legal" surgiu em 20 de novembro de 1922, a partir do decreto nº 15.848, assinado pelo presidente Arthur Bernardes. Dois anos mais tarde, o decreto nº 16.670 aprovou o regulamento detalhado da "natureza, fins e organização" do IML, trazendo uma importante transformação institucional, descrita no artigo 1º: "O Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro constitui uma repartição técnica autônoma, administrativamente subordinada ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores". Desvinculava-se, assim, a medicina legal do âmbito da Polícia Civil1. O decreto de 1924 definiu os setores e cargos do IML, suas atribuições e a regulamentação da perícia e dos exames. O pessoal seria formado por 50 funcionários, sendo 10 médicos-legistas. Entre estes, o decreto determinava que deveria haver não apenas médicos-legistas do Instituto, mas também "professores das especialidades da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e de medicina pública na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro" e "alienistas e seus assistentes da Assistência a Alienados, e o diretor do Manicômio Judiciário" (IMPRENSA NACIONAL, 1923).
1 A divisão da Polícia do Distrito Federal em duas – Civil e Militar – acontecera no início do século, em decorrência de uma lei de 1902, que autorizou o Poder Executivo a modificar a organização da Polícia. Foi essa mesma lei que possibilitou a Afrânio Peixoto implementar sua reestruturação no serviço médico-legal, em 1903.
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Segundo Hércules (1988), as novas orientações resultaram na ampliação das instalações do IML e na construção de um novo necrotério, na Praça XV. Um escudo com as insígnias da Medicina e da Justiça foi criado para representar a nova instituição, trazendo a inscrição Fideliter ad lucem per ardua tamen ("Fidelidade à verdade custe o que custar").
A autonomia não durou mais do que uma década. Findo o governo de Washington Luís (1926-1930), o IML voltou a ficar subordinado ao chefe da Polícia Civil do Distrito Federal. Em 1932, sob o primeiro governo de Getúlio Vargas, construiu-se um anfiteatro para que as aulas práticas de Medicina Legal das faculdades oficiais fossem ministradas no IML. Os professores foram autorizados a emitir laudos oficiais dos casos apresentados aos alunos. Não foi possível obter informações sobre os efeitos, na prática médico-legal, do autoritarismo vigente durante o Estado Novo (1937-1945). Mas sabe-se que períodos de ditadura costumam inviabilizar um trabalho médico-legal ético e isento de pressões políticas. A sustentação ideológica daquele regime pressupunha, como um de seus pilares, uma polícia forte e atuante. Sob o comando de Filinto Müller, houve um esforço no sentido de modernizar a polícia e "dignificar a função policial, dissociando a imagem polícia/violência" (VELLOSO, 1982, p. 98). Para conquistar legitimidade social, a Polícia passou a desempenhar tarefas claramente assistencialistas, destinadas, por exemplo, aos mendigos e aos menores abandonados. Em contrapartida, revestia-se do direito de perseguir os descontentes: "Os que se mostram recalcitrantes com a nova ordem precisam ser combatidos porque são injustos quando não reconhecem o esforço do Estado para atender ao ‘bem comum’" (Velloso, Ibid., p. 99). Se teve que participar compulsoriamente desse projeto de "polícia total", a Medicina Legal, ao menos nos aspectos técnicos, beneficiou-se da modernização promovida por Filinto Müller.
Dentro deste processo de modernização da polícia, é criado, em 1938, o Departamento Nacional de Segurança Pública, contando com os melhores sistemas de investigação ("polícia científica" em contraposição à empírica), seleção de corpos de funcionários (recrutados não mais nas universidades mas nas Escolas de Polícia) e a montagem de um sistema de vigilância eficiente contra as propagandas e ideologias "antinacionais". (Velloso, Ibid., p. 99)
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Como se vê, a modernização teve um custo: a interferência estatal em todas as áreas, com o conseqüente afastamento, ou ao menos constrangimento, da participação científica e acadêmica na polícia técnica. Porém a ditadura varguista perdurou por um tempo relativamente curto, insuficiente para causar prejuízos mais profundos à Medicina Legal brasileira.
Um novo ciclo democrático iniciou-se, e com ele um período glorioso para o IML, sob todos os aspectos. Em 31 de janeiro de 1949, no governo de Eurico Gaspar Dutra, foi inaugurado o novo "Instituto Médico-Legal Afrânio Peixoto". Apesar de manter-se subordinado à Polícia Civil, sua orientação institucional era clara e manifesta: "Uma Casa da Ciência".
Localizado entre as ruas dos Inválidos e Mem de Sá, no Centro do Rio, o grande prédio, composto por duas alas de seis andares, abrigaria durante a década de 50 as melhores tecnologias em medicina legal do mundo, em ambientes amplos e projetados especialmente para a realização dos exames laboratoriais e periciais. O prestígio do trabalho do IMLAP era alimentado pelo intenso intercâmbio com a academia.
Relatos de funcionários antigos não poupam elogios àquela época áurea, quando os médicos eram bem pagos, as condições de trabalho eram excelentes e o Instituto abrigava estudantes de outros estados, e até estrangeiros, que vinham aprender com nossas técnicas de Medicina Legal.
Vinha muita gente de outros países fazer especialização em Medicina Legal aqui. O IML oferecia alojamento, bolsas de estudo, os cursos duravam até um ano. No "Livro de Ouro" do Centro de Estudos tem muito nome importante.
(Perito legista)
No início da década de 60, o IMLAP era considerado um dos melhores órgãos de Medicina Legal das Américas. O que aconteceu para que a instituição chegasse, em 40 anos, ao estado de abandono em que se encontra hoje? Poucas publicações trazem informações objetivas para responder a esta questão, mas basta observar os principais momentos políticos da história nacional e considerar suas repercussões socioeconômicas para entender o lento porém constante processo de sucateamento dessa instituição.
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Alguns profissionais do IML apontam duas mudanças político-administrativas nos anos 60 e 70 como fatores de desvalorização da Polícia, com diminuição dos investimentos e queda dos salários: a transferência do Distrito Federal para Brasília (1960) e a fusão do Estado do Rio de Janeiro com a Guanabara (1975).
No entanto, o possível desprestígio político ocasionado por essas mudanças talvez não fosse tão grave se não tivesse sido acompanhado pelo total esvaziamento da autonomia do IML, mais uma vez esmagada por um regime autoritário, desta vez militar e muito mais prolongado do que fora o Estado Novo. Com o perdão do trocadilho, pode-se afirmar que o principal golpe sofrido pelo IML em toda a sua história foi o de 1964. A partir daí, o órgão foi relegado à sombra do aparato principal do Governo, que centralizou na hierarquia militar as principais responsabilidades estatais, incluindo a Justiça e a Polícia. O endurecimento do regime, a partir de 1968 (com o AI-5 e o posterior governo Médici), tirou de cena parte dos recursos humanos que davam vida intelectual ao IML.
Começou a afundar muito na época da revolução, 1964. Muitos colegas, inclusive colegas da Fiocruz, muitos sumiram. Quando começou a perder grandes cabeças, abalou não só a Medicina Legal, mas a Medicina em geral.
(Perito legista)
Hércules (1988) comenta o empobrecimento científico do Centro de Estudos do IML no fim dos anos 60, relacionando-o com a deterioração das condições de trabalho e dos salários.
Em 1969, no IML do Rio de Janeiro surgiu um periódico que seria indexado na Excerpta Medica de Basilea, tal a qualidade dos trabalhos nele publicados. (...) Infelizmente só resistiu 4 anos à falta de verbas e de interesse científico da maioria dos peritos do IML, premidos por condições de trabalho massacrantes e pelo aviltamento salarial que atingiu a classe médica e forçou os profissionais a se desdobrarem em vários empregos.
No auge da repressão, trabalhar para uma instituição oficial relacionada à Justiça e à Segurança Pública significava ter que se submeter às arbitrariedades perpetradas pelo Estado sob o silêncio da censura e coações de todo tipo. A ultrajante prática de
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tortura disseminou-se entre as forças de repressão, e a Medicina Legal brasileira viveu seus anos mais obscuros. O princípio de "Fidelidade à verdade custe o que custar" foi aviltado pela omissão e até mesmo a conivência de alguns médicos na ocultação dos fatos e na produção de documentos convenientes ao regime. Provas cabais de torturas foram omitidas, homicídios se transformaram em suicídios. Baseado em centenas de relatos de pessoas presas e torturadas durante a ditadura, o livro Brasil: nunca mais (1985) traz às claras os terrores ocorridos nos porões do regime:
Da leitura desses relatos, se obtém a certeza da conivência e mesmo participação direta de médicos e enfermeiros na prática de torturas. Algumas vezes, estas práticas chegaram ao limite da resistência dos atingidos, ocorrendo morte. Os médicos que, freqüentemente, forneceram laudos falsos acobertando sinais evidentes de tortura, também ocultaram a real causa mortis daqueles que foram assassinados. Os motivos das mortes indicadas nos laudos necroscópicos, em sua maioria, coincidiam exatamente com a "versão oficial" dos acontecimentos, tais como: "atropelamentos", "suicídios", "mortes em tiroteio", omitindo qualquer evidência de tortura. [...] Os médicos-legistas, geralmente vinculados às Secretarias de Segurança Pública, participaram também na ocultação de cadáveres. (p. 234)
É óbvio que os órgãos de repressão recorriam sempre aos médicos "de sua confiança", ou seja, aqueles dispostos a compactuar com o serviço sujo. A vida profissional da maioria dos peritos, porém, passava ao largo dos crimes cometidos pelo Estado. Fossem eles omissos ou simplesmente ignorassem o que se passava, restava-lhes fazer o seu trabalho da melhor maneira possível, em condições cada vez mais precárias e cada vez mais distantes da academia. A Medicina Legal — dadas as restrições conjunturais que praticamente impediam a dedicação intelectual a essa disciplina relacionada à Justiça, à Verdade e à Ética — gradativamente perdeu o lugar destacado que ocupava no meio científico. "Hoje, a sociedade de Medicina Legal é fraquíssima. Hoje é difícil eu ter um aluno na universidade que diga ‘Eu vou fazer Medicina Legal’" (depoimento de um perito legista).
Praticamente deixou de existir a dedicação exclusiva dos médicos ao IML. A necessidade de complementar os salários e o desestímulo acadêmico levou a maioria dos peritos a procurar outras especializações.
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A redemocratização dos anos 80 encontrou o IMLAP já envelhecido pelas duas décadas de escassez de investimentos. Se o ambiente político e cultural tornou-se mais e mais propício para uma retomada de projetos voltados ao aprimoramento da polícia técnica, economicamente os anos 90 representaram nova estagnação na esfera pública. Chegamos à era do Estado mínimo, do "enxugamento de recursos", da pauperização do funcionalismo público, do dramático desaparelhamento dos serviços mais essenciais à população. O IML chega ao século XXI no mesmo prédio e com praticamente a mesma infra-estrutura dos anos 50, com o agravante da má conservação. A Medicina Legal brasileira ficou para trás.
Em função de maior potencial econômico, países desenvolvidos do Hemisfério Norte, como Inglaterra, Alemanha, França, Estados Unidos, Japão e outros, valendo-se de incentivos e verbas governamentais, têm conseguido introduzir técnicas requintadas na atividade pericial. Como exemplo, podemos citar a determinação da paternidade pela seqüenciação do DNA dos pais. Mais ainda, dispõem de meios de divulgação mundial como o "Journal of Forensic Sciences" norte-americano. (HÉRCULES, 1988)
Não há dúvida que a consolidação da democracia conferiu às universidades o oxigênio necessário para que a Medicina Legal voltasse a florescer, contribuindo para a restauração da Justiça e o esclarecimento de fatos ainda encobertos pela herança dos anos de chumbo. A partir da descoberta, em 1990, de centenas de ossadas humanas em uma vala clandestina do cemitério de Perus, na Grande São Paulo, iniciou-se um importante trabalho de peritos da Unicamp no sentido de identificar aqueles cadáveres. Muitos eram desaparecidos políticos da ditadura militar e seus óbitos foram finalmente esclarecidos.
Aos poucos, em alguns estados brasileiros (os entrevistados citaram o Pará, o Rio Grande do Sul e a Bahia como exemplos), novos estudos e pesquisas vêm sendo desenvolvidos na área. Também no Rio de Janeiro a especialidade vem recebendo mais atenção, e o recente concurso para peritos legistas (2001) pode representar o início de uma fase de ressurgimento acadêmico e político do IML.
A crescente violência urbana no Rio de Janeiro é hoje um urgente desafio social, realçando a necessidade de reformas na área da Segurança Pública para enfrentá-la. A atual Polícia Técnica precisa adquirir rapidamente melhores condições de
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funcionamento, de modo a contribuir para investigações policiais mais rápidas e eficazes, possibilitando à Justiça e ao Ministério Público atuarem com o máximo rigor no combate à criminalidade. Simultaneamente, discute-se a adoção de políticas intersetoriais contra a violência, que passam pela produção e sistematização de informações para orientar ações estruturais que ajudem a prevenir e evitar as diversas formas de violência. Esta perspectiva multidisciplinar de compreensão da violência traz de volta à pauta a questão da autonomia do IML e da Polícia Técnica como um todo, à semelhança do que já acontece em diversos países. No estado do Pará, desde o ano 2000 as perícias são autônomas em relação à Segurança Pública, funcionando em regime de autarquia subordinada à Secretaria de Defesa Social. No Rio de Janeiro, vem sendo experimentada a fusão dos diferentes trabalhos periciais em um só órgão: os Postos de Polícia Técnica (Poltec) reúnem atividades de perícia médico-legal, criminal e papiloscópica. O próximo objetivo é a autonomia: projeto elaborado por um grupo de peritos do Poltec de Duque de Caxias apresenta um plano detalhado para a implantação dos Institutos Forenses de Tecnologia e Ciência (Inftec), com a mesma estrutura dos Poltecs mas subordinados diretamente ao Governador ou Vice-Governador do estado (GIOVANELLI et. al., 2002).
Para quem lê essa retrospectiva histórica, fica a impressão de que apenas os peritos legistas trabalham no IML. Esta seria uma conclusão errada, mas não a de que apenas eles influenciam diretamente nos rumos da instituição. Durante toda a história, técnicos e auxiliares de necropsia, mesmo antes de terem essa designação, papiloscopistas e escrivãos, entre outros profissionais, também escrevem a trajetória do IML. Mas sempre estiveram distantes das mobilizações políticas e acadêmicas que marcaram as transformações da Medicina Legal na Polícia, relegados à condição de "mão-de-obra desqualificada". Até o final dos anos 70 a seleção dos profissionais que assessoram a necropsia (então chamados de "serventes") era feita sem concurso. Como disse um técnico entrevistado, eles eram "pegados a unha", para serem "açougueiros".
O crescente desemprego dos anos 90 fez com que o último concurso para auxiliar de necropsia (com exigência mínima de ensino fundamental completo, o antigo primeiro grau) atraísse uma multidão de candidatos. Muitos dos aprovados têm até curso superior, alguns são médicos formados. A melhoria de qualificação certamente pode valorizar a categoria e torná-la mais atuante na defesa de seus interesses e direitos, e na participação das questões políticas concernentes ao IML.
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II.2 O IML hoje
O Instituto Médico-Legal tem por atribuição necropsiar corpos de pessoas que tenham sofrido morte violenta ou suspeita e realizar exames de corpo de delito em pessoas vivas que tenham sofrido qualquer tipo de violência. Inscreve-se hoje na estrutura da Secretaria de Segurança Pública, onde está subordinado à Chefia da Polícia Civil, no grupo de instituições denominado Polícia Técnica (juntamente com o Instituto de Criminalística Carlos Éboli, ICCE, e o Instituto Félix Pacheco, IFP).
Além da sede (IMLAP), localizada no Centro, e do IML de Campo Grande, na Zona Oeste, o IML funciona nos seguintes municípios do estado do Rio de Janeiro: Angra dos Reis, Araruama, Duque de Caxias, Itaboraí, Niterói, Nova Friburgo, Nova Iguaçu, Petrópolis, São João de Meriti, Teresópolis e Volta Redonda. No entanto, todos os exames laboratoriais requeridos no estado são enviados para a Sede, pois os postos do IML no interior e Baixada Fluminense realizam apenas perícias necrológicas e exames de corpo de delito, não contando com laboratórios.
A penúria e o abandono dos ambientes de trabalho do IMLAP foram constatados pela equipe da Pesquisa do Claves ainda na fase de aplicação dos questionários. Em todos os setores o que se via eram equipamentos antigos e mal conservados, ambientes escuros, mobiliário velho ou improvisado. Em algumas salas administrativas, vários funcionários trabalhavam em um espaço reduzido, enquanto andares quase inteiros pareciam espaços abandonados, com salas vazias, sucatas de antigos equipamentos, estantes cheias de papéis jogados, sem organização ou finalidade, possíveis informações valiosas perdendo-se no descaso.
A situação é ainda mais grave nos setores técnicos, que exigem não apenas eficiência instrumental como higiene e obediência a uma série de normas para a proteção dos trabalhadores. Nos laboratórios registram-se queixas relativas à falta de material de qualidade, e mesmo à escassez de instrumentos básicos para a realização de exames laboratoriais, muitas vezes providenciados pelos profissionais com seus próprios recursos. A situação mais dramática, em termos de condições e ambiente de trabalho, é a do setor de Necropsia.
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Ao contrário do que imagina o senso comum, o IMLAP, com seus 237 profissionais, comporta atividades bastante diferenciadas. Pode-se dividi-las em seis grandes finalidades:
(a) Administrativa. Os setores administrativos assumem incumbências burocráticas. Têm como ambiente escritórios cheios de arquivos e papéis, com pouco espaço para os funcionários e precárias condições técnicas: mobiliário e objetos com aspecto antigo, quase nenhuma informatização, má conservação da estrutura física do prédio. As salas da Direção2 do IML apresentam melhores condições. A maior parte dos serviços administrativos está localizada no segundo e terceiro andares.
(b) Clínica Médica. Responsável pela realização de exames de corpo de delito. A maioria dos funcionários é formada por médicos, que atendem diuturnamente a uma grande demanda de homens, mulheres e crianças, vítimas não-fatais da violência. Os peritos da Clínica Médica são os mesmos que trabalham no setor de Necropsia (em plantões alternados). Há também atendentes (que podem ser técnicas de necropsia, auxiliares de cartório ou enfermeiras), sempre mulheres3, que recebem o público, organizam o atendimento e fazem os registros necessários. A clínica médica localiza-se logo à esquerda de quem entra no saguão principal do IML, pela rua dos Inválidos. São três salas médias e uma pequena: uma é o quarto dos peritos, a outra o quarto das atendentes, a outra a sala de exames, e na menor se realizavam os exames de estupro e conjunção carnal. Porém, recentemente foi inaugurado um novo espaço para o atendimento de mulheres vítimas de violência, que funciona no quarto andar. Segundo relatos, a média de atendimentos na Clínica Médica é de 70 a 80 pessoas por dia.
Os serviços de psiquiatria, otorrinolaringologia, oftalmologia, odontologia, radiologia e neurologia funcionam em outras salas, em outros andares. Os peritos responsáveis pelos exames nessas especialidades costumam atender somente uma vez por semana, devido à menor demanda pelos serviços.
2 Oficialmente, não existe o cargo de "Diretor" do IML, extinto por decreto. A função é ocupada informalmente, assim como as "chefias" dos diferentes setores.
3 Para facilitar o atendimento das mulheres vítimas de violência. Nos exames de estupro ou conjunção carnal, quando o perito é homem uma das atendentes fica na sala ao lado da vítima, para evitar constrangimentos.
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(c) Serviço Social. Também no primeiro andar, à frente, funciona o Serviço Social, cuja principal função é localizar as famílias que não apareceram em busca de seus mortos. Este serviço atua como uma ponte entre a Necropsia (que recebe os cadáveres), o IFP (que tenta identificar as impressões digitais dos corpos que chegam sem documentos), o setor de Indigentes (que funciona junto à Necropsia, organizando as informações dos cadáveres que esperam por reconhecimento) e as famílias. O Serviço Social é também responsável por tirar fotos dos cadáveres e apresentá-las para as famílias que vêm tentar o reconhecimento. Todos os funcionários do Serviço Social são estagiários de universidades, das áreas de Psicologia e Serviço Social. Este setor esteve prestes a encerrar suas atividades em 2002, por falta de verbas. O jornal Extra publicou, na época, uma reportagem sobre a relevância do serviço (responsável pelo aumento do número de reconhecimentos pelas famílias, e conseqüente diminuição do número de enterros como "indigentes" — em 2000, foram 200 "indigentes" a menos, em relação ao ano anterior), que pode ter contribuído para um novo investimento no Serviço Social. No final daquele ano, estava sendo feita uma reforma para melhorar as condições de trabalho no setor.
(d) Laboratórios. Localizados nos andares superiores do IML, são responsáveis por realizar os exames bioquímicos nos tecidos e vísceras dos cadáveres, para auxiliar na determinação da causa mortis, e em material coletado das vítimas de lesões. Cada laboratório dedica-se a uma especialidade: Toxicologia (verifica a presença de drogas e substâncias no organismo), Patologia (verifica a existência de doenças e da causa orgânica que levou à morte) e Hematologia (analisa sangue, urina e esperma). Os peritos têm formação superior em áreas bioquímicas, os técnicos que os auxiliam são "técnicos de laboratório policial" concursados especialmente para a tarefa, e técnicos e auxiliares de necropsia desviados para os laboratórios. As salas foram projetadas, na década de 50, para a especificidade de suas funções, mas desde então houve poucos esforços para a modernização das condições estruturais e técnicas de trabalho. Em agosto de 2002, foi reinaugurado o laboratório de Toxicologia no quarto andar, depois de uma reforma que contribuiu, sobretudo, para a segurança no trabalho.
(e) Centro de Estudos. Outrora intrinsecamente envolvido com o dia-a-dia da instituição, atualmente funciona como um apêndice do IML. Permanece boa parte do tempo fechado ao público. Os peritos que lecionam em universidades utilizam o auditório e a sala de aula para ensinar as técnicas de necropsia e outros assuntos práticos
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ligados à Medicina Legal. Há também encontros e seminários de grupos de estudo compostos pelos médicos da casa. Não se pode considerar, no entanto, que universidade e IML realizem um efetivo intercâmbio. As atividades acontecem em esferas de competência isoladas e independentes.
(f) Óbitos e Necropsia. Formalmente definidos como dois setores, conduzem atividades interdependentes. Seus profissionais — cujas categorias são: auxiliares e técnicos de necropsia, peritos legistas, auxiliares de cartório e papiloscopistas — desempenham uma série de tarefas desde a admissão dos cadáveres no IML até a liberação com o atestado de óbito. Todo o processo acontece no térreo, nos fundos de ambos os prédios. A seguir é apresentada uma descrição sintética dos espaços e dos procedimentos dos setores de Óbitos e Necropsia:
• Portaria, setor de Necropsia (2 funcionários por plantão) — Registra a entrada e saída dos cadáveres, que são trazidos pela Defesa Civil e liberados depois de expedido o atestado de óbito.
• Necropsia — O cadáver é retirado do carro da Defesa Civil, despido e lavado pelos auxiliares de necropsia (2 por plantão), sendo depois encaminhado para a sala de necropsia, onde é aberto pelo técnico de necropsia (2 por plantão) e examinado pelo perito legista (4 por plantão). O perito dita a causa mortis, que é datilografada em máquina de escrever por um escrivão (atualmente chamado de "auxiliar de cartório policial") na forma de um laudo técnico. Caso sejam necessários exames laboratoriais (como acontece com quase todos os corpos), amostras de tecido, vísceras ou sangue são encaminhadas para os respectivos laboratórios, que complementam o laudo. Uma vez pronto o laudo, o atestado de óbito pode ser produzido, e o cadáver, liberado.
No quarto andar, o setor de Necropsia utiliza geladeiras para armazenar os cadáveres, que sobem e descem de elevador. O estado dessas geladeiras é lastimável. Uma nota publicada na imprensa revela a situação enfrentada pelos profissionais que precisam freqüentar esse ambiente:
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Denúncia de uma enfermeira do IML do Rio: cadáveres se amontoam e se desfazem no quarto andar do necrotério, no centro da cidade, por falta de espaço nas geladeiras. Funcionários pisam em larvas e insetos que brotam dos corpos. O ambiente é de contaminação e desrespeito a vivos e mortos. (HUMBERTO, 2003)
• Indigentes, setor de Necropsia (2 funcionários por plantão) — Este setor tem a função de organizar os cadáveres não identificados por impressões digitais nem reconhecidos pela família. Depois de 72 horas sem que a família seja localizada para reconhecer o corpo, os cadáveres são levados para o cemitério de Santa Cruz em veículo do próprio IML, apelidado pelos funcionários de "Morcegão". O Morcegão sai dia sim dia não, e tem capacidade para transportar até oito cadáveres. A maior parte do trabalho do setor de Indigentes é administrativa: organizar os dados dos cadáveres que entraram, anexar-lhes os laudos periciais e registrar sua saída ao término do prazo, acompanhando, nesse meio tempo, as tentativas do IFP de reconhecer as impressões digitais dos cadáveres, e do Serviço Social de localizar as famílias. No entanto, uma vez por semana, às sextas-feiras, cabe a esses profissionais o serviço nada agradável de realizar a transferência dos cadáveres de "indigentes", que aguardavam reconhecimento na geladeira do quarto andar, para caixotes de madeira. Esses corpos costumam se encontrar em avançado estágio de decomposição.

• Setor de Óbitos (2 funcionários por plantão) - Primeiro atendimento prestado ao público, às famílias que vêm informar-se sobre o desaparecimento de um parente ou resolver as providências burocráticas de identificação e documentação, para a liberação dos corpos. Os funcionários permitem um parente por vez dentro da sala. Só podem se responsabilizar pelos procedimentos parentes da família nuclear (inclusive marido ou mulher, desde que casados no civil). Toda a documentação dos familiares e do cadáver passa pelo setor de Óbitos, que se comunica com as delegacias (os casos têm que ser registrados em delegacia antes de seguir para o IML), com o IFP (para onde são enviadas as digitais) e com os demais setores do IML, registra as
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informações prestadas pelas famílias, organiza os Termos de Reconhecimento (assinados pela família, não valem como prova técnica da identidade dos cadáveres) e emite os Atestados de Óbito a partir do laudo pericial. Se junto ao corpo são encontrados documentos, não é necessário mandar as impressões digitais para o IFP: o próprio papiloscopista (1 por plantão) do setor de Necropsia compara as impressões e confirma a identidade.
Em resumo, as atividades consistem em: receber e registrar o cadáver, lavá-lo, cortá-lo, examiná-lo, recolher e examinar suas impressões digitais, emitir o laudo técnico, atender a família, conseguir os documentos necessários para a liberação do corpo, produzir o atestado de óbito, liberar o corpo. Como vimos, este processo depende do encadeamento das ações dos diversos profissionais dos setores de Óbitos e Necropsia.
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Notas
1. A divisão da Polícia do Distrito Federal em duas – Civil e Militar – acontecera no início do século, em decorrência de uma lei de 1902, que autorizou o Poder Executivo a modificar a organização da Polícia. Foi essa mesma lei que possibilitou a Afrânio Peixoto implementar sua reestruturação no serviço médico-legal, em 1903.
2. Oficialmente, não existe o cargo de "Diretor" do IML, extinto por decreto. A função é ocupada informalmente, assim como as "chefias" dos diferentes setores.
3. Facilita o atendimento das mulheres vítimas de violência. Nos exames de estupro ou conjunção carnal, quando o perito é homem uma das atendentes fica na sala ao lado da vítima, para evitar constrangimentos.
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III Metodologia
A origem dos caminhos metodológicos desta dissertação está vinculada à pesquisa "Condições de trabalho e saúde dos policiais civis no Rio de Janeiro", promovida pelo Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli (Claves), da Fundação Oswaldo Cruz. Em fevereiro de 2002, quando decidi-me pelo recorte do processo de trabalho no IML como objeto de análise, a pesquisa já estava na primeira etapa do trabalho de campo. É, portanto, indispensável descrever a proposta metodológica desenvolvida pela pesquisa junto à Polícia Civil para a compreensão da metodologia que me orienta na abordagem do IML.
Desde o início da pesquisa do Claves, em janeiro de 2001, faço parte da equipe multidisciplinar que se propôs investigar as condições de trabalho e saúde dos policiais civis e militares do Rio de Janeiro4. Em um primeiro momento, tomando por base um levantamento da bibliografia existente sobre o assunto, constante do projeto original da pesquisa (MINAYO, coord., 2000), foram demarcadas as principais questões teóricas e metodológicas a serem enfrentadas pela equipe, no trabalho quanti-qualitativo proposto. Procurava-se estabelecer hipóteses que levassem à investigação dos elos existentes entre a experiência profissional dos policiais e os possíveis prejuízos à saúde e à qualidade de vida decorrentes desse processo de trabalho. Para auxiliar na elaboração das diretrizes teóricas e metodológicas, as reuniões da equipe de pesquisa contaram com a participação de convidados ligados às instituições policiais ou estudiosos dos temas afeitos à pesquisa. Entre os bolsistas pesquisadores, foram incluídas pessoas que já tinham alguma proximidade com a Polícia, resultante de estágios ou pesquisas junto à instituição.
A equipe analisou estudos com características similares, que contribuíram para a seleção das principais questões a serem abordadas nas etapas quantitativa e qualitativa e para a definição da forma como seriam desenvolvidas junto aos sujeitos da pesquisa. Ocorre que raras metodologias trazidas ao nosso conhecimento coincidiam exatamente com os objetivos que nos norteavam: as diversas pesquisas existentes sobre saúde do trabalhador foram importantes referências, mas a maioria dedica-se à análise de outros
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contextos profissionais (como em Itani, 1997; Minayo, 1986; Deslandes, 2000; Lima et. al., 1999; Sato, 1991; Seligmann-Silva, 1994); pesquisas nacionais sobre o processo de trabalho e as percepções dos trabalhadores na Polícia não costumam ter como prioridade o foco nas condições de saúde, com raras exceções, como a investigação de Bourguignon et. al. sobre as condições de saúde e trabalho de policiais civis no Espírito Santo (1998); estudos sociológicos sobre segurança pública revelam aspectos fundamentais para a compreensão da identidade institucional e de problemas históricos e socioculturais que permeiam o trabalho policial, atendo-se portanto a análises estruturais e conjunturais para compreender as manifestações da violência urbana (PMERJ, 1994; Kant de Lima et. al.; Donnici, 1990; entre outros); pesquisas sobre qualidade de vida raramente voltam-se à especificidade laboral da Polícia (como faz a dissertação de mestrado de Arruda, 2000).
A heterogeneidade das abordagens não significa, porém, a existência de grandes contradições teórico-metodológicas entre elas. Identificamos, isto sim, complementaridade entre as metodologias, o que veio ao encontro dos objetivos da pesquisa: buscar a compreensão de seu complexo objeto iluminando-o a partir dos enfoques de diversas áreas de conhecimento, valendo-se de técnicas quantitativas e qualitativas de coleta de dados.
A construção do questionário quantitativo durou vários meses e rendeu muita discussão entre os membros da equipe, para que fossem contempladas todas as temáticas consideradas relevantes e todas as hipóteses que havíamos levantado, e que fossem apresentadas em formatos adequados à compreensão dos sujeitos e favoráveis para a análise dos resultados — o que significou, algumas vezes, a utilização da mesma apresentação utilizada em estudos semelhantes, para comparação posterior das informações dos policiais com as de outros grupos sociais. Foram realizadas, também, entrevistas prévias com alguns profissionais responsáveis pela gestão de diferentes atividades, a fim de incorporar ao instrumento conhecimentos mais depurados — não necessariamente fundados em bases teóricas, mas nascidos da vivência prática e da experiência — e verificar a ressonância que nossas hipóteses obtinham no discurso e na mentalidade policiais.
4 A proposta original da pesquisa incluía o estudo da Polícia Militar, porém dificuldades de diversas ordens atrasaram os entendimentos com esta instituição, que teve que ser retirada do estudo pela premência dos prazos estabelecidos com os financiadores.
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O resultado foi um questionário de grandes dimensões: 123 questões fechadas, bastante abrangentes e diversificadas, visando ao mapeamento das condições de saúde, trabalho e qualidade de vida dos profissionais, e das possíveis conexões existentes entre essas três dimensões. Aplicado a 1.459 profissionais de 38 órgãos da Polícia Civil, voluntários e protegidos pelo compromisso do anonimato, o questionário quantitativo da pesquisa divide-se em quatro grandes blocos:
• Bloco 1: Dados pessoais e socioeconômicos. Informações individuais e familiares objetivas, categoria e tempo de serviço, sexo, idade, escolaridade, situação conjugal, filhos, moradia, rendimentos e gastos.
• Bloco 2: Qualidade de vida. Informações objetivas e percepções subjetivas sobre moradia, bairro, transporte, lazer, associativismo, satisfação consigo mesmo e com diversos aspectos da vida, relações familiares e de amizade, expectativas para o futuro.
• Bloco 3: Condições de trabalho. Informações objetivas e percepções subjetivas sobre formação e capacitação profissional, outra(s) atividade(s) remunerada(s), condições materiais, carga horária, férias, relações hierárquicas, reconhecimento profissional, dificuldades, riscos e satisfação pessoal com o trabalho.
• Bloco 4: Condições de saúde. Informações objetivas e percepções subjetivas sobre condições de saúde física e mental, hábitos alimentares, atividades físicas, utilização e satisfação com serviços médicos e hospitalares.
• Bloco 5: Consumo de substâncias. Utilização de cigarro, álcool e outras drogas lícitas e ilícitas.
Na verdade, o Bloco 5 resulta de um desmembramento do Bloco 4, pois a equipe previu a resistência dos policiais em responder a questões sobre o consumo de drogas, e decidiu separá-las das outras temáticas de saúde, deixando-as estrategicamente no fim do questionário.
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Após duas sessões de pré-teste, em que o questionário foi aplicado em grupos de policiais para a verificação do tempo de preenchimento e de possíveis dificuldades de compreensão e interpretação, sendo submetido, como conseqüência, a ajustes finais de forma e conteúdo, finalmente partiu-se a campo.
O IML foi uma das instituições selecionadas para compor a amostragem estatisticamente significativa da Polícia Civil, dividida em três grandes grupos: Operacional (delegacias), Técnica (IML, Instituto de Criminalística Carlos Éboli/ICCE e Instituto Félix Pacheco/IFP) e Administrativa. A equipe de pesquisadores do Claves iniciou a aplicação dos questionários no IML nos primeiros dias de janeiro de 2002, visitando diariamente todos os setores e ambientes de trabalho para apresentar os objetivos da pesquisa e convidar os policiais a participar. Dado o volume de questões a serem respondidas, seria inviável solicitar o preenchimento imediato, em pleno local de trabalho e durante o expediente ou plantão. A solução encontrada (assim como em todos os outros órgãos pesquisados) foi deixar os questionários com os voluntários, e voltar nos dias seguintes para recolhê-los preenchidos. Porém, como muitos profissionais trabalham no sistema de escalas, comparecendo à instituição a cada quatro dias ou uma vez por semana, encontramos muita dificuldade em distribuir os questionários a todos e, mais ainda, em recolhê-los preenchidos. O trabalho de campo estendeu-se durante um mês inteiro, chegando ao resultado de 58,22% de funcionários participantes, ou seja, 138 questionários preenchidos e restituídos.
A definição dos temas a serem abordados no estudo do IML obrigou-me a delimitar um grupo de questões extraídas do questionário. Das 123 questões, foram escolhidas 58, reagrupadas de acordo com os objetivos deste estudo, resultando na seguinte divisão temática: (a) situação profissional; (b) informações pessoais; (c) informações socioeconômicas; (d) satisfação; (e) trabalho e saúde.
Há perguntas de todos os Blocos do questionário, mas foram suprimidas boa parte das questões do Bloco 4, pois esta dissertação não tem por objetivo aprofundar-se na análise do perfil epidemiológico dos trabalhadores, optando por descrever minuciosamente tudo o que diz respeito ao processo de trabalho e analisar, em especial, as percepções de risco físico e psicológico, e a identidade profissional e social dos trabalhadores. Em outras palavras: detenho-me mais nas percepções sobre saúde do que nas condições de saúde propriamente ditas. Até porque, para a averiguação destas,
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seriam necessários recursos metodológicos e teóricos que fogem ao escopo essencialmente etnográfico deste trabalho.
Para a etapa qualitativa da pesquisa, estava prevista a realização de entrevistas semi-estruturadas e de grupos focais com representantes das diversas instituições, categorias e processos de trabalho que constituem a Polícia Civil. As entrevistas voltaram-se aos gestores e macrogestores da instituição. Entre os gestores, foram entrevistados os diretores responsáveis pelos órgãos da Polícia Técnica, incluindo o IML. Os grupos focais pretendiam reunir os profissionais segundo a natureza do trabalho do órgão ao qual estavam vinculados, fosse ele Operacional, Técnico ou Administrativo.
As entrevistas e os grupos focais seguiram roteiros bastante próximos, com exceção de algumas questões relacionadas às responsabilidades de chefia, de natureza política e institucional, submetidas apenas aos gestores e macrogestores nas entrevistas. Os roteiros foram estruturados com base nos grandes eixos temáticos da pesquisa, os mesmos do questionário: qualidade de vida, condições de trabalho e condições de saúde, procurando aprofundar a investigação das percepções subjetivas dos profissionais sobre os aspectos peculiares de seu trabalho (ausentes do questionário, que se voltava para "policiais", de um modo geral).
Quando negociávamos com as instituições a composição dos grupos focais, constatamos que no IML não seria possível realizar um encontro entre profissionais como o que sugeríamos. A Direção alegou que não haveria funcionários com disponibilidade para abandonar o serviço e dedicar-se, durante cerca de uma hora e meia, ao debate. Especialmente peritos legistas, auxiliares de necropsia e técnicos de necropsia, envolvidos o dia inteiro com a perícia dos corpos no necrotério: a ausência de alguns paralisaria o trabalho de todos. Optou-se, então, por substituir o grupo focal por entrevistas individuais baseadas no mesmo roteiro, com representantes dos diversos setores da instituição. Fiquei responsável por entrevistar: um perito da Diretoria, um perito da Clínica Médica, dois peritos dos laboratórios de Toxicologia e Patologia, um auxiliar do setor de Óbitos e um técnico do setor de Necropsia. Na primeira etapa foram realizadas, portanto, seis entrevistas.
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O recorte analítico que propus exigia, do ponto de vista qualitativo, a realização de mais entrevistas e o aprofundamento de alguns temas característicos daquele processo de trabalho. O fato de ter sido eu o responsável pelas entrevistas com os profissionais do IML (visto que já construíra o projeto de dissertação dedicado a essa instituição) propiciou-me a oportunidade de homogeneizar os roteiros de todas as entrevistas (aquelas feitas para o Claves e aquelas adicionais, realizadas para este estudo). Utilizei o roteiro básico da pesquisa da Polícia e incluí temas relevantes para a análise específica do processo de trabalho no IML, que giravam em torno das seguintes questões: a entrada na instituição — Por quê escolheu trabalhar na Polícia?, Por quê o IML?; a adaptação — Como foi o impacto de deparar-se com um trabalho que envolve cadáveres e a presença constante da morte?; a identidade profissional e social — O que é ser policial?, O que é trabalhar no IML?, O que pensam os outros policiais, os familiares, a comunidade?.
Uma vez que na instituição coexistem diversas dinâmicas de trabalho, optei pelo enfoque mais detido nos setores de Óbitos e Necropsia — da entrada à liberação dos cadáveres, caminho que pressupõe a perícia (que resulta no laudo pericial), o contato com a família, a identificação (ou não, o que leva à classificação e enterro como "indigente"), e finalmente a produção do atestado de óbito (a partir do laudo pericial e da identificação). O trabalho desses setores merece ser analisado porque, de um lado, sintetiza bem a especificidade do IML em relação à Polícia Civil, propiciando inclusive uma discussão sobre os problemas institucionais aí encerrados, e de outro porque expõe os trabalhadores a riscos à saúde física e mental próprios daquelas atividades.
Quase todas as entrevistas aconteceram no ambiente de trabalho dos profissionais, em salas mais reservadas, onde pudemos conversar a sós. No setor de Necropsia os locais escolhidos pelos entrevistados foram ora uma sala desativada, apenas com um sofá, ou a sala de papiloscopia, onde ficava o telefone e por isso havia um certo entra e sai de pessoas. Também as entrevistas na Direção, em suas salas amplas e silenciosas, foram interrompidas algumas vezes por secretárias ou colegas em busca de uma assinatura ou uma informação. Apenas uma entrevista ocorreu fora do IML: fui encontrar-me com um auxiliar de necropsia no local onde ele trabalhava como segurança.
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Nesta dissertação, serão analisadas 14 entrevistas com profissionais do IML. A primeira foi feita ainda na fase de levantamento de conteúdo para a pesquisa do Claves (entrevista prévia), em julho de 2001. As outras treze foram realizadas entre junho e dezembro de 2002. Foram essas as entrevistas e os participantes:
1. Dois peritos da Direção
2. Técnico de laboratório ("inspetor") da Hematologia
3. Perito da Patologia
4. Auxiliar de necropsia do setor de Óbitos
5. Perito do Centro de Estudos
6. Perito da Toxicologia
7. Técnico de necropsia do setor de Necropsia
8. Perito da Clínica Médica
9. Perito da Direção
10. Auxiliar de necropsia do setor de Indigentes/ Necropsia
11. Auxiliar de necropsia do setor de Óbitos
12. Auxiliar de necropsia do setor de Necropsia
13. Perito do setor de Necropsia
14. Perito do setor de Necropsia
Os critérios de seleção dos entrevistados basearam-se nas categorias e setores, mas com o tempo descobri que, no interior do setor de Necropsia, existem ambientes e realidades profissionais distintos: Necropsia propriamente dita, setor de Indigentes e setor de Portaria. Ao tomar conhecimento dessa distinção, consegui entrevistar um funcionário do setor de Indigentes, mas não tive a mesma sorte na Portaria. Por diversas vezes procurei os profissionais da Portaria para agendar uma entrevista, mas eles eram os mais reticentes de toda a instituição. Este fato me instigou ainda mais a tentar falar com algum deles e conhecer o que se passa naquele ambiente. Mas a realização, transcrição, sistematização e análise das outras entrevistas não podiam parar, o tempo passava e as recusas aos poucos me faziam desanimar. Os outros entrevistados deram informações sobre a Portaria, e minha observação contribuiu para mais algumas inferências sobre o que acontece ali. Hoje estou certo de que aquele serviço é um dos mais desgastantes do IML, e falarei disso em minhas análises. Porém devo registrar a falta que me fez uma entrevista com um de seus funcionários.
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Devo também comentar uma decisão conceitual tomada já durante a redação desta dissertação. Uma pergunta sobre o tema "qualidade de vida" constava no roteiro das primeiras entrevistas. Gradativamente, como uma reação espontânea à dinâmica das entrevistas (que sempre nos faz reagir às reações dos entrevistados e adaptar o roteiro à medida que os conhecemos melhor), deixou de ser incluída. Não era uma pergunta muito proveitosa: boa parte dos participantes não tinha clareza sobre o que seria "qualidade de vida", e por isso não se engajava em respostas mais aprofundadas sobre o assunto. Ironicamente, os resultados do questionário quantitativo me fizeram reconsiderar a importância do tema. Ironia porque os dados quantitativos é que falaram mais alto sobre um tema intrinsecamente qualitativo. Minha frustração refere-se ao fato de eu não ter insistido no tema quando fiz as entrevistas, julgando já ter assuntos demais para tratar, mais adequados à análise do que a nebulosa noção de "qualidade de vida". Apesar de ter sistematizado referências teóricas suficientes sobre essa questão, decidi-me por não priorizá-la, frente à sua complexidade conceitual e ao risco de empobrecer a parte analítica do estudo ao tentar abarcar um universo epistemológico por demais heterogêneo. Limito-me a comentar os aspectos mais evidentes de qualidade de vida, quando estes se fizerem relevantes.
Complementando a análise qualitativa, descreverei adiante minha experiência no campo, desde as primeiras impressões como visitante leigo até as relações estabelecidas ao longo de um ano com os profissionais e minha própria adaptação ao ambiente e à mentalidade institucional. A observação participante carrega a pretensão da objetividade, ao tentar identificar as características do processo de trabalho em questão: condições estruturais, hierarquia profissional, dinâmica de trabalho e relações intersubjetivas envolvidas. Mas resultará também em uma descrição subjetiva (e, tanto quanto possível, autocrítica) da vivência de campo. O relato de minha experiência poderá enriquecer o trabalho de problematização das significações, percepções e identidades que procuro discutir. Minha própria descrição também é um discurso analisável, permeado de representações sociais e valores pessoais que atribuo ao que observo, sobretudo em se tratando de um objeto inteiramente apartado de minha vivência anterior.
Está implícita, não apenas no relato da observação participante como na construção de todas as análises desta dissertação, uma relação dinâmica e necessariamente assimétrica entre pesquisador e pesquisados, em que todos os sujeitos
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influíram, a partir de sua entrada em cena, na alteração dos rumos inicialmente planejados, de acordo com movimentos de aproximação–distanciamento, identificação–estranhamento, tensão–relaxamento, surpresa–naturalização, compreensão–incompreensão, de parte a parte. Processos esperados em qualquer situação de comunicação humana, e que não podem ser ignorados em nome de uma pretensa neutralidade do pesquisador. Sobre isto, afirma Bourdieu:
Ainda que a relação de pesquisa se distinga da maioria das trocas da existência comum, já que tem por fim o mero conhecimento, ela continua, apesar de tudo, uma relação social que exerce efeitos (variáveis segundo os diferentes parâmetros que a podem afetar) sobre os resultados obtidos. (...) O sonho positivista de uma perfeita inocência epistemológica oculta na verdade que a diferença não é entre a ciência que realiza uma construção e aquela que não o faz, mas entre aquela que o faz sem o saber e aquela que, sabendo, se esforça para conhecer e dominar o mais completamente possível seus atos, inevitáveis, de construção e os efeitos que eles produzem também inevitavelmente. (1997, p. 694-5)
Além disso, a análise das significações levará em conta que as representações sociais são produtos culturais de determinado contexto histórico e social. Como afirma Minayo, "pela sua vinculação dialética com a realidade, a compreensão da fala exige ao mesmo tempo a compreensão das relações sociais que ela expressa" (1992, p. 175). A perspectiva subjetiva, aquela que primeiro sobressai em qualquer relato ou entrevista, não pode obscurecer as relações coletivas de que é expressão e veículo, nem os determinantes socioculturais nos quais se engendra.
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III.1 Observação participante
Entrei no IML pela primeira vez no dia 3 de janeiro de 2002. A equipe de seis pesquisadores, que marcou encontro na entrada principal da instituição, vivia uma ansiedade diferente em relação àquele campo. Já tínhamos estado em delegacias e setores administrativos da Polícia, ainda visitaríamos os outros órgãos da Polícia Técnica, mas o IML era considerado por todos "o pior" campo da pesquisa. Não sabíamos exatamente o que nos esperava, mas tínhamos certeza de que não seria nada agradável. O aspecto antigo do prédio e o cheiro de putrefação que logo sentimos, naquele dia quente de verão, só fizeram reforçar nossas expectativas negativas.
Alguns colegas se ofereceram a rodar o IML inteiro, desde que não tivessem que passar pela necropsia. Eu, apesar de também estar desconfortável com a situação e sentir um certo receio do que veria, aceitei a missão junto com outro pesquisador, até porque alguém teria que fazê-lo. Por trás do incômodo, havia a curiosidade de entrar num lugar que não conhecia e ver coisas que nunca tinha visto. Um sentimento diferente da chamada curiosidade "mórbida", que sempre causa uma aglomeração de espectadores em torno de cadáveres frescos e públicos, que ficam no meio da rua à espera de quem os recolha. O que me impulsionava não era um desejo de ver os cadáveres, mas sim o de conhecer o espaço, o ambiente de trabalho, os profissionais, e até mesmo o de ver minha própria reação àquela situação.
Foi possível notar, no rosto dos funcionários do setor de Óbitos, ao ouvirem nosso pedido para ter acesso à sala da Necropsia, a satisfação de perscrutar nossa mal disfarçada insegurança. Para eles deve ser mesmo engraçado reparar o temor de quem vem de fora ao adentrar em um ambiente que lhes é totalmente familiar. Tivemos acesso a um corredor azulejado, onde estavam depositadas macas com cadáveres em cima, os próximos a serem periciados. Logo em frente, na sala de necropsia, um auxiliar de cartório batia à máquina, enquanto dois peritos acompanhavam, descontraídos, o trabalho dos técnicos de necropsia, empenhados naquele momento em abrir dois corpos. Adotando uma espécie de tapa-olhos interior, tentando não focalizar o que acontecia nas duas mesas de necropsia bem ao meu lado, caminhei reto até o auxiliar de cartório, apresentando a pesquisa e anunciando a distribuição dos questionários. Os peritos, sem dar muita atenção, apanharam e guardaram seus questionários. Sem querer incomodar os técnicos, que estavam trabalhando, disse-lhes que depois conversaríamos. Mas um
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deles parou o que estava fazendo e, sem sair de perto do cadáver, pediu para que eu me aproximasse e explicasse logo a pesquisa. Fiquei frente a frente com ele, ao lado do corpo, suas luvas sujas de sangue segurando um serrote, e comecei a falar. Com a maior naturalidade, enquanto acompanhava minha explanação, o homem voltou a serrar vigorosamente o crânio do cadáver, olhando ora para seu objeto de trabalho ora para mim. "Desafiadoramente", foi o que pensei. Sua atitude, conscientemente agressiva, continha uma mensagem subliminar, algo como: "Se quer pesquisar o meu trabalho, tem que ver isto aqui". Ao mesmo tempo, assinalava sua superioridade em relação a mim, pela via da virilidade, da coragem de encarar um trabalho que eu não conseguia sequer olhar.
O barulho do serrote abrindo a caixa craniana do cadáver, o cheiro forte daquele lugar e a visão dos corpos sobre as macas no corredor (os pés, as cabeças, um ou outro braço caído), foram as marcas que levei do primeiro dia. Como não cheguei a passar mal com a experiência, me senti mais seguro para as próximas visitas. Com o tempo, ver corpos no corredor, sangue pelo chão e cadáveres sendo periciados já não me incomodava quase nada, exceto quando surgia algo novo para mim, como um cadáver carbonizado ou um corpo mutilado. Mas adotei uma estratégia defensiva desde o início, e a mantive até as últimas visitas ao necrotério: não olhar diretamente para os corpos, deixá-los passar apenas por minha visão periférica. Não focalizá-los foi a forma de me sentir protegido das ameaças que representam (o nojo, o medo, o terror da morte violenta) e de não pensar na vida individual e social que havia antes em cada corpo, invariavelmente interrompida de modo trágico.
Mesmo depois de um longo período freqüentando o IML, e em especial aqueles setores, ainda não conhecia boa parte dos funcionários. O sistema de plantões alternados contribuiu para isso, mas também a organização aparentemente caótica do trabalho, em que cada um faz o seu horário. A regra ali é uma só: os corpos que entram hoje têm que ser examinados hoje. Não se pode deixar cadáveres para o dia seguinte, ou a próxima equipe terá trabalho acumulado e, de acúmulo em acúmulo, o setor entraria em colapso, chamando a atenção da Direção. É tudo o que não se deseja. A organização informal do trabalho é um pacto coletivo, para o qual é necessário manter certa distância em relação à Direção.
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Talvez por isso tenha havido um grande número de recusas em conceder entrevistas: expor os problemas pode resultar em maior intervenção da chefia. A resistência dos profissionais em conceder as entrevistas foi maior do que poderiam sugerir as dificuldades reconhecidas de tempo, paciência, disponibilidade e disposição para conversar durante cerca de 45 minutos sobre "condições de trabalho e saúde". Foram muitas as evidências de que havia outros motivos para a recusa, e por isso elas merecem ser mencionadas.
Em primeiro lugar, a receptividade à pesquisa contrastou enormemente nos diversos setores pesquisados. Junto aos profissionais dos laboratórios, da Direção, do Centro de Estudos e da Clínica Médica, o procedimento de agendar e realizar as entrevistas seguiu caminhos diretos: verificadas as disponibilidades comuns, marcados data, hora e local, as entrevistas foram realizadas. Os obstáculos enfrentados para a realização das entrevistas na Necropsia foram de outra magnitude, assumiram diversas formas, mais explícitas ou mais veladas, mas o fato é que, reunidos, resumem uma experiência que em alguns momentos evocava Kafka, tal o grau de espanto e desânimo que me acometia.
Devo confessar que perdi a conta da quantidade de recusas que recebi. Posso, no entanto, descrevê-las quanto à forma, o que certamente ajuda a compreender o comportamento dos profissionais, sua relação com o trabalho e com a instituição. Mas antes devo ressalvar a atitude daqueles que efetivamente concederam as entrevistas, pois todos eles, sem exceção, foram solícitos, pacientes e comprometidos com a dinâmica da conversa. Ainda que estivessem cansados, responderam com seriedade e detalhadamente a cada questão, não se recusaram a falar de nada nem se arrependeram ou pediram para desgravar o que disseram (um direito seu, explicitado antes da entrevista). Com exceção de um5, todos assinaram o Termo de Consentimento.
Pois a necessidade de ler e assinar o "Termo de Consentimento Livre e Esclarecido" foi um dos principais obstáculos à adesão daqueles que se esquivaram das entrevistas. Algumas recusas ocorreram seguindo exatamente o mesmo script: simpatia e interesse pela minha apresentação dos objetivos da pesquisa, com uma amabilidade que, em duas etapas, se desmanchava inteiramente: quando era apresentado o Termo de
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Consentimento e referida a necessidade de uma assinatura, e quando surgia o gravador. Dois auxiliares de necropsia chegaram a soltar uma gargalhada quando mencionei que pretendia gravar a entrevista. "Gravar?!", como se fosse a proposta mais absurda do mundo. Por mais que eu explicasse ser aquela uma exigência do Ministério da Saúde, uma maneira de comprovar a participação espontânea e consciente dos entrevistados e garantir seu anonimato, por mais que eu, como responsável pela pesquisa, também assinasse o Termo comprometendo-me a agir dentro daqueles princípios éticos, uma incongruência saltava aos olhos dos profissionais e encerrava a questão: como podem garantir sigilo e anonimato, se me pedem que assine? Se é anônimo e sigiloso, não assino! Muito menos deixo que gravem.
É compreensível o sentimento de desconfiança e medo de "prestar um depoimento" gravado sobre condições de trabalho. A mesma reação foi verificada nos outros órgãos da Polícia pesquisados, e certamente em infinitas outras pesquisas em outros campos. Mas o fato é que, entre os profissionais da Necropsia, de um lado houve recusas radicais e de outro comprometimento integral. Sem dúvida uma contradição, que sugere uma divisão dos profissionais em dois grupos: aqueles para quem o trabalho faz algum sentido e que acreditam em melhorias, e aqueles que já perderam qualquer esperança de trabalhar em condições mais dignas. Muitos foram explícitos: "Desista, isso não vai adiantar nada".
Houve ainda outra forma de recusa, que aconteceu seguidamente: depois de uma recepção solícita, agendávamos uma data para a entrevista, que não acontecia porque o funcionário não aparecia. Um exemplo: numa quarta-feira, encontrei um auxiliar de necropsia, que me disse estar cobrindo o plantão de um colega, e que seu plantão de fato seria sexta-feira, quando poderíamos conversar. Na sexta-feira, ele não apenas não estava lá como era desconhecido de todos os funcionários. Sobre o episódio, escrevi no diário de campo:
As hipóteses que faço, diante de mais este bolo, são: a) ou ele é tão desorganizado que dois dias antes não dá para ter certeza de que vai mesmo trabalhar num certo plantão (desorganização intrínseca ao processo de trabalho, uma vez que ninguém reclamou ou sentiu sua ausência e que não foi
5 O profissional do setor de Indigentes, que tampouco autorizou a gravação da entrevista, apesar de ter me concedido uma longa e bastante elucidativa conversa.
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a primeira vez que aconteceu); b) ou ele marca de propósito num dia em que sabe que não estará lá. Trata-se de uma mensagem para mim, do tipo: "Não quero dar entrevista nem quero você entrevistando aqui". Pois se ele não quisesse falar, simplesmente se recusaria a dar entrevista, em vez de marcar dia e hora com aparente convicção. E esta "mensagem" também pode estar por trás das repetidas vezes que isto ocorreu comigo.
Até mesmo peritos, que normalmente eram menos defensivos, agendaram entrevistas e sumiram na data marcada. É comum acontecer de os funcionários se darem um tempo de folga (na rua, nos bares, resolvendo questões particulares ou "simplesmente sumindo", como disseram alguns sobre seus colegas) e, de repente, a demanda explodir, com a súbita chegada de corpos e famílias. Como nesse dia, relatado no diário:
Ao entrar no corredor só vi corpos. Nem um único funcionário. Cinco famílias esperando atendimento e seis corpos espalhados pelos corredores (4) e nas salas (2), em cima de macas metálicas. E nenhum funcionário. [...] Ocorreu-me que eu tinha conseguido chegar ali, do lado das principais provas materiais de inquéritos policiais, a sós com os corpos, sem problemas.
A prática das ausências faz parte da estratégia coletiva encontrada para suportarem o desgaste daquela situação de trabalho. Cada um sabe de si e de suas responsabilidades, e no fim do dia todos os cadáveres terão sido periciados — é este o compromisso profissional que assumem uns com os outros. Claro que há os que não cumprem com seus deveres e responsabilidades. Nas entrevistas isto foi dito. Mas a estratégia coletiva não merece ser quebrada por desvios individuais. "Não existe", disse-me um deles, levar queixas sobre faltas de colegas para a Direção.
A pressão mais violenta que enfrentam parte das funerárias. Os agentes dessas empresas (chamados pejorativamente por eles de "papa-defuntos") representam os familiares dos mortos e utilizam todo tipo de artifício para conseguirem o atestado de óbito com mais rapidez. Estão sempre presentes na Portaria, onde entram os cadáveres, e junto ao setor de Óbitos, que libera os atestados. Um dia, um homem, aparentando ser o chefe de uma funerária, chegou à porta do setor de Óbitos e disse que era importante darem prioridade a uma determinada necropsia, pois era gente conhecida de um certo vereador. "Tem que ser feito logo", "Deixa comigo, está tudo certo", "Mas já começou?", "Está começando...".
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Enquanto a relação fica nesses termos, tem uma conotação até benéfica para os profissionais do IML, pois seu trabalho é enfim valorizado e eles assumem uma posição de poder frente às famílias, funerárias, e até perante a mídia. Vários foram os entrevistados que disseram que o IML "só é reconhecido quando morre alguém famoso". Nestes casos, eles são procurados, tentam entrevistá-los, eles podem se orgulhar de seu know how. Na semana seguinte à morte de uma personalidade famosa, um funcionário contou-me que trabalhara no cadáver e, notando minha curiosidade, descreveu sua opinião sobre o aspecto geral do corpo. Também narrou, satisfeito, "a confusão danada" que ficou em frente ao IML por causa do ilustre falecido.
No entanto, a pressão das funerárias costuma representar um fator permanente de estresse para os funcionários. Os papa-defuntos já os conhecem pelo nome, e é sempre um esforço livrar-se de suas investidas. Mesmo que sempre aparecendo pela negação ("Há denúncias, mas nunca foi comprovado"), é recorrente o tema do suborno, por parte dos agentes funerários, para a liberação mais rápida dos corpos de gente rica e poderosa. Certa vez, tive a oportunidade de conversar com alguns agentes funerários que aguardavam, na rua, a liberação de corpos. Um deles me explicou que conseguia liberar o corpo mais rápido ("Em uma hora, eu tenho o atestado") devido à "amizade" e ao "respeito mútuo" na relação com os funcionários do IML. Notando minha curiosidade sobre sua atuação, ele quis saber se eu era jornalista. E disse: "Se eu te responder, daqui a pouco sou eu que vou chegar num desses aí" (apontando um veículo da Defesa Civil, que transporta cadáveres).
Um aviso na porta do atendimento do setor de Óbitos diz algo como: "Proibida a entrada de pessoas sem autorização". Abaixo, alguém acrescentou à caneta "SÓ O NAPARÓLA". Apesar de não conhecer a expressão, compreendi o seu sentido: com jeitinho, com um "papo", uma "parola", dá para ter acesso, dá para conseguir o que é formalmente interditado. Ninguém se preocupou em apagar aquele adendo, ou em substituir o cartaz por outro.
Mesmo não lidando diretamente com os cadáveres, os profissionais que trabalham no setor de Óbitos são obrigados a entrar em contato com toda a sorte de histórias trágicas e violentas, com mortes nem sempre fáceis de digerir e familiares muitas vezes descontrolados, ou "simplesmente" desesperados, deprimidos,
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inconsoláveis. Numa das primeiras conversas que tive com um auxiliar nessa sala, ele pediu para eu perguntar o que queria saber, durante um atendimento que estava realizando. Disse-lhe que esperaria acabar de atender a senhora à sua frente. Testemunhei, então, o tipo de caso que recebem diariamente. Era uma mulher aparentando 40 anos (talvez fosse mais nova), que relatava o seu caso: sua irmã era empregada doméstica e estava na casa da patroa quando entrou em trabalho de parto. Na casa com ela estava apenas a filha adolescente da patroa. Trancada no banheiro, a mulher não atendeu aos apelos da menina para que abrisse a porta. A garota desistiu de bater e ligou para sua mãe. Quando esta chegou, encontrou a empregada atônita no banheiro, e o filho já morto na privada. A patroa prestou depoimento em que dizia acreditar que sua empregada assassinara o bebê. A mulher que narrava estes fatos, tia do recém-nascido que falecera, contou que a irmã sofria de depressão pós-parto, e que no nascimento dos outros filhos sempre tinha contado com o apoio de alguém, já que não conseguia sequer olhar ou tocar nos seus filhos recém-nascidos. Havia sinais de asfixia no bebê que morreu. O cadáver não pôde ser identificado porque o seu nascimento não havia sido registrado. O hospital que o recebeu se negou a expedir o certificado de nascido vivo, alegando que o bebê já chegara morto às suas dependências. Com o boletim de ocorrência policial a família precisava tirar uma certidão de nascimento em cartório, para só então conseguir o atestado de óbito no IML. Ela queria saber se o corpo do bebê já havia sido enterrado como "indigente". O auxiliar estava certo de que sim.
Ele tratava a mulher com uma objetividade dura, quase rude, fazendo perguntas diretas e interrompendo-a quando o que dizia não era o que interessava para resolver o caso. Fez o mesmo com os familiares que entraram em seguida. Ainda que a tentação seja a de atribuir a uma espécie de autodefesa sua dureza diante de dramas pessoais tão dolorosos, não há como negar que a necessidade de ser prático e objetivo corresponde à grande demanda pelo serviço. Não há tempo para um tratamento mais atencioso, cuidadoso. Por outro lado, mesmo que houvesse todo o tempo do mundo, esses profissionais precisariam apegar-se aos procedimentos formais de sua rotina, não se deixando envolver com as pessoas e com as situações dramáticas com que são obrigados a lidar. Eu me impressionei com a história da mulher que era atendida naquele momento, e me impressionaria com certeza na próxima e na outra e na outra. Não resistiria a algumas horas de observação daquele atendimento sem me sentir mal. Quando as vidas marcadas por mortes violentas entram em sua rotina profissional, é preciso criar estratégias de defesa. Mas, neste caso, não identifiquei uma estratégia
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coletiva. Individualmente, os trabalhadores adotam posturas mais frias ou mais atenciosas, alguns precisam recorrer ao álcool para ficarem mais imunes à dor, outros buscam enxergar tudo como uma grande lição de vida, ou como uma missão.
Outros espaços, no setor de Necropsia: a papiloscopia fica numa salinha bastante improvisada, pois serve também para os funcionários trocarem de roupa, dormirem e falarem ao telefone (o único da Necropsia). Tem uma cama, um armário, uma mesinha (onde os papiloscopistas trabalham), um banheirinho contíguo, um ventilador portátil. As paredes são sujas e descascadas. Sobre o telefone, há vários números escritos à caneta na parede.
A sala dos "vestes" (como são chamados os auxiliares de necropsia) parece um pequeno vestiário, com um escaninho metálico totalmente enferrujado e um sofá onde descansam e dormem.
O setor de Indigentes funciona numa sala com cara de repartição pública, com três mesas e três cadeiras, máquina de escrever, fichários. Mas o aspecto é o mesmo dos outros setores da Necropsia: móveis quebrados e enferrujados, cadeira sem encosto, tijolos aparentes (um buraco de ar condicionado tampado). Quando fui conversar com um dos funcionários desse setor, ele batia na mesma tecla da máquina repetidamente, mudava de linha e continuava a bater na mesma tecla. O trabalho durou cerca de 10 minutos. Ele estava fazendo, "artesanalmente", uma tabela num papel A4, com as linhas e colunas indo de parte a parte na página. Depois iria, com o seu dinheiro, tirar xerox do modelo de formulário que acabara de criar.
A Portaria foi o setor campeão de recusas de entrevistas, tanto que encerrei a pesquisa sem conseguir falar com nenhum dos seus funcionários. Fica numa saleta perto da rua, na entrada por onde a Defesa Civil vem trazer os corpos, e por onde eles são liberados depois. O ambiente é escuro (a janela tem uma proteção contra a claridade e muitas vezes a luz interna fica desligada), com uma mesa (para o trabalho de atendimento e preenchimento dos dados), duas cadeiras para os funcionários e uma cadeira para quem chega. Atrás, um sofá todo rasgado onde os funcionários costumam ficar sentados ou deitados. Há sempre dois ou três na sala, vendo televisão ou descansando. Funcionários dos outros setores também vêm descansar ali. A televisão e o ar condicionado são novos.
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Alguns funcionários que já trabalharam na Portaria disseram, para minha surpresa, que ali o trabalho é mais duro do que na Necropsia, pois implica na responsabilidade de registrar os corpos, colocar etiquetas nos cadáveres que entram e liberar os que saem, corretamente. Um erro nas etiquetas pode resultar num sepultamento equivocado. O cansaço aumenta o risco de falha humana: aquele é o único setor onde o trabalho acontece efetivamente 24 horas por dia. A qualquer momento do dia ou da noite chegam mais cadáveres. O desgaste do trabalho noturno num ambiente como aquele, somado à responsabilidade dos registros e à pressão exercida pelas funerárias, podem ajudar a explicar por que os trabalhadores da Portaria parecem ter sua saúde mais prejudicada pelo trabalho do que os demais profissionais do IML.
Durante o ano em que freqüentei o IML, observei algumas melhorias das condições de trabalho: o laboratório de Toxicologia foi reformado e reinaugurado; o atendimento a mulheres vítimas da violência ganhou uma sala à parte; a recepção ganhou uma bancada com seguranças para identificar os visitantes; o "aquário" onde ficava o Serviço Social estava sendo reformado; soube que melhoraram as condições do banheiro do público; uma pintura na fachada principal do prédio melhorou o aspecto do ambiente para quem chega. Todas as melhorias aconteceram no prédio "principal", onde funcionam a Direção, os laboratórios, a Clínica Médica e o Serviço Social. No mesmo período, não constatei nenhuma alteração nas condições de trabalho do setor de Óbitos (cuja entrada é em outra rua) nem no setor de Necropsia (que fica no fundo dos prédios, longe da vista do público). A única melhoria, em um ano, foi a instalação de um ar condicionado na claustrofóbica sala da Portaria.
Com uma boa dose de otimismo, pode-se pensar que o IML esteja entrando em um momento favorável às melhorias das condições de trabalho, agora que a Segurança Pública vem mobilizando mais esforços políticos. Mas os setores responsáveis pelo "trabalho sujo", justamente aqueles que precisam mais urgentemente de reformas, não vêm sendo priorizados.
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III.2 Referências teóricas
Pode-se afirmar que a característica mais marcante do trabalho nos setores de Óbitos e Necropsia do IML é o contato direto e permanente com cadáveres e com a idéia da morte. A matéria-prima do trabalho são corpos humanos mortos, e estes objetos carregam consigo fortes significações socioculturais. Não se trata de pedaços de carne e ossos, mas de pessoas que morreram violentamente, e cuja morte reverbera intensamente em seu grupo social (mais do que as mortes por causas consideradas naturais).
A morte é ingrediente forte o suficiente para deslocar o espaço social da ocupação daqueles profissionais: não se trata mais de um simples emprego, eles estão vinculados a uma categoria que a sociologia convencionou denominar de "trabalho sujo"6. Nela estão inseridos todos os trabalhadores que lidam com o que a sociedade rejeita ou descarta: o lixo, o esgoto, a morte.
Do ponto de vista psicossocial, uma série de tarefas e ocupações pode apresentar significados que levem a uma discriminação e desvalorização de seus executantes, em decorrência, por exemplo, da natureza e do conteúdo de atividades em que há contato com dejetos (trabalho em esgotos e depósitos de lixo) ou cadáveres (coveiros) (...) A desvalorização freqüentemente é introjetada. Isto é, o trabalhador tende a se autodesvalorizar e, muitas vezes, a se identificar com os conteúdos "sujos" e "mortos" do seu trabalho. As resultantes, em termos psicossociais, podem ser várias, destacando-se o alcoolismo, freqüente nestas ocupações socialmente discriminadas. (SELIGMANN-SILVA, 1994, p. 127)
Não há como falar do trabalho e da saúde dos profissionais do IML sem considerar este conteúdo incômodo e agressivo. Mas o que significa inserir a morte neste estudo?
6 Não confundir com o conceito de "trabalho sujo" utilizado por Dejours em sua discussão de psicodinâmica do trabalho no livro A banalização da injustiça social (1999). Por "trabalho sujo", Dejours entende o desempenho de tarefas que prejudiquem a outrem, em que a ética e a moral são desconsideradas e a maldade é banalizada por meio de processos psicossociais que incluem a "virilidade". Esta discussão pode-se aplicar, talvez, ao trabalho policial, mas não os profissionais da necropsia. O lado "sujo" de suas funções refere-se ao imaginário social sobre a matéria-prima do trabalho, ainda que este seja benéfico e não cause mal a ninguém.
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As noções mais importantes da vida escapam inteiramente à ciência: beleza, felicidade, prazer, dor... A propósito delas, as teorias científicas nada podem falar — o que nos autoriza a pergunta: é possível falar cientificamente sobre a morte? (RODRIGUES, 1983, p. 11)
Nem sobre a morte nem, como observa Rodrigues, sobre qualquer outro sentimento humano, uma vez que eles se dão no interior de cada pessoa, e da individualidade só se pode apreender sua representação social, ou seja, seu sentido mediado pelo coletivo. Da mesma forma, a morte permanece intangível à metodologia científica, que busca reificar fenômenos à condição de objetos classificáveis.
O objeto científico nunca poderá ser a morte, ela mesma, fato consumado, natural e irremediável. O que está em questão não é a morte natural (animal), é a morte social. E sendo social é necessariamente histórica, cultural, ritualística. Nosso objeto são as percepções sobre a morte, produzidas por pessoas obrigadas, pelo seu ofício, a conviver intimamente com ela. Certamente um empobrecimento da morte propriamente dita, um corte em sua significação, mas como não ser assim? Como afirma Rodrigues, procurar apreender a morte é afastar-se dela, e assim perder parte de sua riqueza. No entanto, o que valoriza a análise científica de fenômenos sociais não é sua fidelidade aos fenômenos, uma vez que estudar fenômenos requer destacá-los de sua realidade e de sua própria identidade, com os instrumentos da observação: o olhar subjetivo e social, os códigos da linguagem e da representação, os meios de tradução das percepções. Quando nos propomos a analisar a morte, devemos ter a consciência de que o que vamos fazer é analisar sua sombra, sua projeção nos atores, relações e situações que (estes sim permeados pela linguagem e pela comunicação, portanto objetos da ciência) interagem com ela.
A morte humana não é um fenômeno natural, é um tabu social com significados e conseqüências. Regras sociais básicas nos ensinam a evitar pensar e falar sobre a morte, e ritualizá-la quando ela se torna concreta, incontornável. Também aprendemos a evitar a proximidade com os mortos:
Ninguém permanece perto de um cadáver, sem que sua fisionomia ateste que é precisamente um cadáver o que está vendo. Se a pessoa não está habituada, apresenta certas reações típicas, ousa olhar rapidamente para o cadáver e
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afasta os olhos imediatamente, de maneira a não deixar dúvida de que quer separar sua visão de algo que não quer ver; há quem cubra os olhos e quem desmaie.
O certo é que o morto, como as coisas insólitas, anormais ou ambíguas, constitui um ser impuro, cujo contato representa perigo para o mundo das normas.
(RODRIGUES, 1986, p. 49-50)
Vemos, portanto, que o trabalho desses profissionais tem como tarefa central o contato com um objeto "anormal", um "ser impuro", um "perigo". Vale frisar que a noção de impureza não se relaciona exclusivamente à questão sanitária, mas principalmente ao caráter simbólico da morte: a impureza está no desconhecido, na agressão à ordem social, para quem a morte é um rompimento e uma ameaça. Assim, os cadáveres não são apenas corpos sem vida, são a materialização da morte, sua expressão e seu veículo.
Os corpos mortos e as mortes que eles carregam contaminam com o mesmo teor de impureza o IML e seus profissionais, aos olhos da sociedade. Ao serem aprovados no concurso público para a Polícia, os profissionais dos setores de Óbitos e Necropsia passam a envergar, como uma segunda pele, toda a carga negativa associada à identidade do IML. Sem preparo, acompanhamento psicológico e de saúde ou condições de trabalho que atenuem a crueza de sua função, são obrigados a enfrentar a morte nua, despida de qualquer dos ritos socioculturais que nos protegem a todos da incompreensão e do terror encerrados nesse tabu.
A onipresença da morte não poderia ser isenta de repercussões sobre os comportamentos, e a relativa indiferença com que era vista não podia deixar de implicar uma certa indiferença no que concerne à valorização da vida. (RODRIGUES, 1983, p. 211)
José Carlos Rodrigues refere-se à morte tal como era concebida no Ocidente antes do século XVIII, mas se hoje nossa sociedade procura poupar-se ao máximo do convívio com a morte, esta continua onipresente no trabalho, e conseqüentemente, na vida dos profissionais de necropsia. Sua reação diante da morte remete-nos à descrição feita por Rodrigues sobre o homem do pré-iluminismo: aparentam certa indiferença, que possivelmente resulta em uma mudança na maneira de enxergar a vida.
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O clássico estudo de Philippe Ariès, O homem diante da morte, me foi de grande valia para compreender a evolução histórica e cultural das concepções sobre a morte no Ocidente, e assim poder analisar as representações sociais que os sujeitos do estudo constroem sobre o tema. Ariès lembra da importância simbólica da morte para o homem, qualificando-a, ao lado do sexo, como a expressão da onipresença da natureza sobre o homem. Incapaz de compreender a morte, as sociedades humanas procuram
despojá-la de sua brutalidade, de sua incongruência, de seus efeitos contagiosos, [...] ritualizando-a e fazendo dela uma passagem entre as demais passagens da vida, apenas um pouco mais dramática. (ARIÈS, 1982).
Aparentemente, os profissionais do IML não são poupados, em seu trabalho, da brutalidade e da incongruência da morte, nem mesmo de seus efeitos "contagiosos". Será que, para eles, a significação que envolve a morte é a mesma da sociedade em que vivem? Em caso negativo, como será que, uma vez construída esta significação diferenciada da morte, eles se identificam enquanto sujeitos, enquanto membros da sociedade e enquanto profissionais?
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Processo de trabalho
O objeto do estudo eleito por mim é um processo coletivo de trabalho, em que uma equipe de profissionais realiza diversas funções, complementares e interdependentes, para produzir um resultado final: a liberação do corpo com o respectivo atestado de óbito.
O conceito de processo de trabalho é utilizado em diversos estudos para dar conta da multiplicidade de fatores envolvidos no trabalho. Todo processo de trabalho envolve os seguintes aspectos: (a) condições técnicas oferecidas ao trabalhador para o cumprimento de seu ofício, o que inclui a estrutura física e as condições materiais disponíveis; (b) relações entre os profissionais e relações hierárquicas; (c) relações sociais e ideológicas envolvidas, de interação com o público e/ou com a representação social do trabalho.
Fica claro, portanto, que o "trabalho" não pode ser entendido como uma entidade, uma experiência ou espaço situado à margem da vivência social, ou seja, das relações e representações construídas entre os indivíduos em sociedade. Não se pode querer intervir e entender o trabalho em si. Isto significaria interpretar a identidade do trabalhador apenas enquanto trabalhador. No entanto, o trabalho assumiu uma importância tal em nossa sociedade que a identidade do trabalhador influencia todas as dimensões de sua vida.
Para um efetivo conhecimento do processo de trabalho é preciso colocar em evidência representações sociais de seus agentes. Isto nada mais significa do que discordar da suposta dicotomia existente entre "processos objetivos" e "processos subjetivos" de trabalho (DESLANDES, 2000, p. 40). O conhecimento construído a partir das vivências práticas passa a compor o contexto estrutural, social e cultural em que é gerado. Assim, tomar como objeto de estudo estruturas "objetivas", unicamente, afasta-nos das relações e representações humanas que dão significação e garantem a própria existência de tais estruturas. Realidade objetiva e significação subjetiva interagem permanentemente, e as representações sociais são traduções dessa interação.
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Saúde do trabalhador
Como pretendo investigar de que maneira o processo de trabalho de uma determinada categoria profissional repercute em suas condições de saúde, coloco-me diante de problemas relacionados ao campo da Saúde do Trabalhador.
Suas origens históricas remetem à Revolução Industrial, que alterou profunda e definitivamente as relações de trabalho na Inglaterra do século XVIII e posteriormente em todo o mundo Ocidental. Surge nesse contexto a medicina de fábrica, resultado de legislações e normas destinadas a manter a capacidade de produção do trabalhador, por meio de uma proteção mínima à sua segurança e condições de saúde. O trabalhador era pensado como um componente do sistema produtivo e, assim como qualquer outra peça industrial, quando apresentava problemas prejudicava a acumulação de capital. Uma intervenção médica fazia-se necessária para conservar a força de trabalho, uma vez que a industrialização desenfreada desencadeou graves prejuízos à saúde dos trabalhadores:
As jornadas extenuantes, em ambientes extremamente desfavoráveis à saúde, às quais se submetiam também mulheres e crianças, eram freqüentemente incompatíveis com a vida. A aglomeração humana em espaços inadequados propiciava a acelerada proliferação de doenças infecto-contagiosas, ao mesmo tempo em que a periculosidade das máquinas era responsável por mutilações e mortes. (MINAYO-GOMEZ e THEDIM-COSTA, 1997, p. 22)
A especialização da medicina voltada para o ambiente de trabalho continuou representando "uma espécie de braço do empresário para a recuperação do trabalhador" (op. cit.), o que estabeleceu um perfil de intervenção dos profissionais da saúde que permanece até hoje na Medicina do Trabalho: o foco em sintomas biológicos e individuais, e a tentativa de encontrar explicações unicausais para o processo saúde-doença.
A área da Saúde do Trabalhador ganhou teorias e práticas mais abrangentes e complexas a partir do século XX. A Saúde Ocupacional avançou no que se refere ao estudo do ambiente de trabalho pensado de forma interdisciplinar. Minayo-Gomez e Thedim-Costa, no entanto, consideram que seu resultado final continuou restrito a intervenções pontuais sobre riscos mais evidentes, com soluções mais individuais do que coletivas.
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Ainda segundo esses autores, nos anos 60 e 70 ganharam importância científica a Medicina Preventiva, a Medicina Social e a Saúde Pública, fazendo com que a compreensão da saúde do trabalhador fosse problematizada e ampliada por meio da articulação entre diversos campos de saber. Trata-se, para eles, de um novo paradigma na área, que incorporou em suas análises importantes referenciais das ciências sociais e aspectos da dialética marxista, ao considerar os conflitos de interesses socioeconômicos e o contexto histórico como fatores influentes nas relações sociais que conformam a saúde do trabalhador.
A bem-vinda problematização dos conceitos referentes à saúde do trabalhador advém da própria problematização do conceito de Saúde, que pressupõe que se levem em conta as relações sociais em que se insere e as representações sociais que o traduzem e justificam:
O conceito sociológico de Saúde retém ao mesmo tempo suas dimensões estruturais e políticas e contém os aspectos histórico-culturais de sua realização. (...) Introduzindo a cultura na definição do conceito de Saúde demarca-se um espaçamento radical: ela amplia e contém as articulações da realidade social. (MINAYO, 1999, p. 15)
O conceito de insalubridade, importante inclusive para as implicações legais dos agravos à saúde do trabalhador, costuma ser associado apenas ao ambiente físico do trabalho, e não ao processo de trabalho como um todo (MINAYO-GOMEZ e THEDIM-COSTA, 1997). Ele está relacionado ao conceito de risco, que já inspirou um sem-número de interpretações. Para a Epidemiologia, o risco pode ser compreendido como a "probabilidade de que pessoas expostas a determinado fator ou elenco de fatores sofram danos em sua saúde" (SELIGMANN-SILVA, 1994, p. 75). Mas o conceito carrega outras significações, como mostra Constantino (2001), que destaca a possibilidade de associá-lo às noções de prazer e aventura: assumir riscos, calcular riscos, viver riscos, sentir-se atraído pelo risco.
Fica evidente o caráter fortemente subjetivo do risco. Mais do que as ameaças concretas apresentadas pelas condições de trabalho, interessa saber de que maneira os profissionais percebem os riscos, de que maneira os vivenciam em seu cotidiano, dentro
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de fora do trabalho, o que é particularmente relevante no caso dos policiais, e também dos funcionários do IML que trabalham com segurança privada. A percepção de riscos físicos e psicológicos influi diretamente na forma como os trabalhadores organizam o trabalho real (em oposição ao trabalho prescrito). Potencialmente geradores de sofrimento, os riscos desencadeiam estratégias individuais e coletivas de defesa, com possíveis repercussões na saúde mental dos trabalhadores (DEJOURS, 1993).
O termo trabalho penoso, que pretendo utilizar para caracterizar a experiência dos profissionais do IML, não encontra uma conceituação precisa nos estudos sobre saúde e trabalho, sendo no entanto bastante empregado, com poucas variações de significado, para designar o processo ou as condições de trabalho que exigem esforço físico excessivo ou causam prejuízos à saúde física e mental (SATO, 1995). A mesma autora concebe o trabalho penoso como aquele cujo contexto "gera incômodo, esforço e sofrimento demasiados, sobre o qual (contexto) ele não tem controle".
Toda essa discussão nos leva a ressaltar a importância dos efeitos psicossociais da experiência laboral. Estudos na área da Saúde Mental vêm produzindo valiosos referenciais analíticos para a abordagem da saúde do trabalhador. O francês Christophe Dejours inaugurou todo um novo campo de reflexões, que denominou de Psicodinâmica do Trabalho. Dejours parte da tensão entre sofrimento e prazer para analisar as dinâmicas intersubjetivas mobilizadas na vivência profissional. O sofrimento é decorrente do conflito que se dá quando a estrutura psicológica do indivíduo, moldada em sua história de vida e experiências pregressas, se depara com as imposições do trabalho e tudo o que implicam. A busca do prazer é a reação natural do indivíduo para defender-se da ameaça do sofrimento e proteger sua saúde mental, podendo ser bem-sucedida (quando mobiliza a criatividade e resulta em autonomia e realização) ou não (conduzindo ao sofrimento psicopatológico, à alienação, ao embotamento afetivo, ao alcoolismo). As estratégias de defesa individuais e coletivas são cuidadosamente descritas por Dejours em diversas obras (1992, 1993, 1999a, 1999b).
No Brasil, Edith Seligmann-Silva, em Desgaste mental no trabalho dominado (1994), fala da emergência do campo interdisciplinar da Saúde Mental no Trabalho (SMT). A autora leva em conta as contribuições de Dejours, mas procura alcançar uma perspectiva mais abrangente, a partir das produções de diversas áreas de conhecimento.
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Apresenta-nos, assim, um amplo conjunto de conceitos fundamentais para quem deseja se aprofundar no estudo da saúde do trabalhador.
Merece atenção a discussão sobre desgaste, uma resultante do trabalho que afeta tanto o organismo quanto a saúde mental (esta como decorrência daquele e vice-versa) dos envolvidos. Intensos graus de fadiga física e psicológica podem resultar, segundo a autora, num quadro crônico de desgaste, que leva à alienação e "corrói a identidade, ao atingir valores e crenças, podendo inclusive ferir a dignidade e a esperança" (Ibid., p. 80-81). Os prejuízos à identidade do trabalhador correspondem, segundo Sainsaulieu (apud. SELIGMANN-SILVA, 1994, p. 84), a empobrecimentos de personalidade, e em conseqüência, de sociabilidade.
Ainda no campo das perspectivas psicossociais do trabalho, Seligmann-Silva (Ibid., p. 59) nos fala das principais necessidades humanas envolvidas em situações de trabalho, como propuseram Frankenhaeuser e Gardell. Seriam elas: exercer controle pessoal sobre o próprio trabalho (que poderíamos definir como autonomia); viver interações pessoais; assegurar a existência de um sentido, identificando um todo significativo que justifique o trabalho. A autora acrescenta à lista a necessidade de receber reconhecimento social e, no caso específico de países de economia dependente, a necessidade manter o emprego (sobrevivência).
De fato, esta pesquisa identificou o problema do reconhecimento social e profissional como um dos pontos centrais relativos à satisfação dos trabalhadores. A capacidade de enxergar o significado do próprio trabalho está intimamente relacionada à valorização institucional que recebem (do IML e da Polícia Civil). Segundo Pierre Marty, "a perda dos significados do trabalho pode atingir a identidade social, aniquilar o interesse e extinguir o prazer" (Ibid., p. 62, grifos meus). A ausência de prazer, ou de "tesão", pelo trabalho será um dos temas tratados em minha análise, visto que foi levantado pelos próprios sujeitos da pesquisa.
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Notas
4. A proposta original da pesquisa incluía o estudo da Polícia Militar, porém dificuldades de diversas ordens atrasaram os entendimentos com esta instituição, que teve que ser retirada do estudo pela premência dos prazos estabelecidos com os financiadores.
5. O profissional do setor de Indigentes, que tampouco autorizou a gravação da entrevista, apesar de ter me concedido uma longa e bastante elucidativa conversa.
6. Não confundir com o conceito de "trabalho sujo" utilizado por Dejours em sua discussão de psicodinâmica do trabalho no livro A banalização da injustiça social (1999). Por "trabalho sujo", Dejours entende o desempenho de tarefas que prejudiquem a outrem, em que a ética e a moral são desconsideradas e a maldade é banalizada por meio de processos psicossociais que incluem a "virilidade". Esta discussão pode-se aplicar, talvez, ao trabalho policial, mas não os profissionais da necropsia. O lado "sujo" de suas funções refere-se ao imaginário social sobre a matéria-prima do trabalho, ainda que este seja benéfico e não cause mal a ninguém.
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IV Resultados quantitativos: os questionários
Neste capítulo, apresento e faço breves comentários sobre os dados quantitativos obtidos pela aplicação do questionário da Pesquisa "Condições de Trabalho e Saúde dos Policiais do Rio de Janeiro" junto aos trabalhadores do Instituto Médico-Legal.
IV.1 Situação profissional
Responderam aos questionários 138 funcionários (58,22% do total), assim identificados, por categoria:
Cargo na Polícia24,1%24,1%23,4%10,9%6,6%4,4%2,9%3,6%Perito LegistaAux. NecropsiaTéc. NecropsiaEscrevente/ EscrivãoTéc. LaboratórioPapiloscopistaDetetive/ Det.-inspetorOutros
Figura 1 - Respostas à questão 1: Qual o seu cargo na Polícia?
Como se vê, 71,6% dos questionários foram respondidos por peritos legistas, auxiliares e técnicos de necropsia, em proporções quase idênticas. Esta distribuição representa bem a divisão do trabalho no IML e a especificidade de seus serviços, já que essas são as três principais categorias policiais presentes na instituição (76,8% do total) e dedicam-se apenas às funções ligadas à medicina legal.
Em meados de 2001, a Polícia Civil alterou a nomenclatura de suas categorias funcionais, fato ainda não plenamente assimilado pelos profissionais. Depois de 20 anos trabalhando como "detetive" ou "escrivão", não é de um dia para o outro que o policial consegue definir-se como "inspetor" ou "auxiliar de cartório policial". Com o intuito de evitar possíveis erros de preenchimento, a equipe que elaborou o questionário decidiu oferecer, como alternativas de resposta à questão "Qual o seu cargo na Polícia?", as
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denominações segundo a antiga classificação. Para a análise posterior, bastaria adaptar as respostas à atual nomenclatura.
As categorias de perito legista, auxiliar de necropsia, técnico de necropsia e papiloscopista não mudaram de nome. Os papiloscopistas, ainda que em sua grande maioria estejam alocados no Instituto Félix Pacheco (IFP) — órgão da Polícia responsável pelo registro, organização e identificação de impressões digitais —, também são necessários ao IML, para recolher as impressões digitais dos cadáveres e enviá-las para a identificação do IFP. Se o cadáver portava carteira de identidade quando foi encontrado, a confirmação da impressão digital é feita pelo papiloscopista do próprio IML.
Já onde se lê "Escrevente/ Escrivão", deve-se entender que atualmente esta categoria é designada "auxiliar de cartório policial", cargo presente em todos os órgãos da Polícia, normalmente associado a atividades administrativas. No IML, eles desempenham funções burocráticas nos setores administrativos, prestam serviços à Clínica Médica e ao setor de Necropsia, datilografando os resultados das perícias, e também no setor de Óbitos, produzindo os atestados de óbito.
Os antigos "detetives" e "detetives-inspetores" são hoje "inspetores" ou "investigadores". Sua presença no corpo funcional do IML só pode ser explicada pela prática, bastante usual na Polícia Civil, de realocações de pessoal, atendendo a pedidos individuais ou em resposta ao desejo de chefes que selecionam seu grupo de assessores independentemente da categoria funcional.
Em alguns casos, a nova classificação juntou sob uma mesma categoria ocupações totalmente distintas, e assim, em vez de esclarecer, confunde. Os técnicos de laboratório, que na antiga nomenclatura recebiam exatamente esta designação fiel a seu ofício, hoje estão no grupo dos "inspetores", apesar da distância que separa sua prática dos atendimentos e investigações realizados pelos "inspetores" (antigos "detetives" ou "detetives-inspetores") lotados nas delegacias. Hoje dizer "Sou inspetor de polícia" não esclarece muita coisa, pois tanto este profissional pode trabalhar com produtos químicos no exame de vísceras humanas dentro de um laboratório do IML, como pode passar boa parte do tempo armado e nas ruas, investigando crimes, combatendo e prendendo bandidos.
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Dentro do que optei definir como "Outros" estão as seguintes categorias, que apareceram, cada uma, apenas uma vez: perito criminal, operador policial de telecomunicações, motorista, carcereiro e auxiliar de enfermagem. Com exceção, provavelmente, do motorista (categoria hoje incluída entre os "investigadores"!), esses profissionais desempenham, no IML, funções diferentes da natureza do cargo para o qual foram contratados.
O questionário procurou diferenciar a categoria funcional formalmente ocupada da função efetivamente desempenhada, para identificar que categorias estão mais sujeitas ao desvio de função. A questão 3 perguntava o seguinte: "Caso você esteja em desvio de função, qual atividade você exerce atualmente?". O resultado foi expressivo: praticamente um em cada três funcionários (29,7%) disse estar em desvio de função. Sobressaem os que informaram exercer as atividades de auxiliar de necropsia (10,2%) e de escrevente (10,2%); 4,2% trabalham como técnico de laboratório policial; duas pessoas (1,7%) afirmaram estar em desvio de função exercendo as atividades de técnico de necropsia, e duas (1,7%) trabalham como motoristas.
Causa estranheza que as funções do auxiliar e do técnico, relacionadas à necropsia, sejam exercidas por pessoas não contratadas para esses serviços. Isto porque os casos de desvio de função costumam acontecer com a concordância, quando não por iniciativa própria, dos profissionais. Dificilmente alguém será obrigado a trabalhar em uma atividade não desejada, se não foi contratado para desempenhá-la. Como na observação de campo e nas entrevistas não encontrei nenhum caso exemplar de tal situação, levanto a hipótese de que a pergunta que lhes foi dirigida tenha sido mal interpretada: esses profissionais reconheceram-se em desvio de função, mas em vez de marcarem a atividade que exercem, marcaram a categoria a que pertencem. Foi o que observei com mais freqüência: auxiliares de necropsia trabalhando nos laboratórios e nos setores administrativos (aqueles que responderam "técnico de laboratório" e "escrevente" podem também estar se referindo a esta situação, interpretando corretamente a pergunta). E, coerentemente com a proporção obtida nos questionários, vários relatos asseguraram que o desvio de função atinge mais auxiliares de necropsia do que técnicos de necropsia. Mas é importante reiterar que esta é uma hipótese interpretativa, que julguei necessário elaborar para explicar os dados
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4,4%26,3%33,6%9,5%15,3%10,9%
quantitativos obtidos nesta questão, que não pareceram verossímeis.
Os dados dos questionários mostraram, também, que o desvio de função não é uma prática eventual ou provisória, pois apenas 4,4% dos trabalhadores estão em desvio de função há menos de 6 anos. Oito por cento trabalham em outra atividade há entre 6 e 10 anos; 7,1% entre 11 e 15 anos; 3,5% entre 16 e 20 anos; e 2,7%, há 21 até 25 anos7.
Tempo de serviçoaté 5 anos6 a 10anos11 a 15anos16 a 20anos21 a 25anos26 anosou mais
Figura 2 - Respostas à questão 2: Quanto tempo você tem de serviço na Polícia Civil?
A maioria dos profissionais que responderam ao questionário trabalha no IML há pelo menos 6 anos. Apenas 4,4% têm menos tempo de casa. Boa parte dos funcionários tem uma longa experiência na instituição: 26,2% trabalham no IML há mais de 20 anos. Isto é característico do serviço público: a estabilidade do emprego resulta em vidas profissionais inteiras dedicadas à mesma tarefa. Os longos períodos de tempo entre os concursos públicos acabam gerando problemas de renovação no quadro funcional, situação bastante comum nos últimos 20 anos.
7 Respostas à questão 4: Há quanto tempo está em desvio de função?.
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Escalas39,3%27,4%14,1%10,3%5,2%3,0%0,7%40h/semanaPlantão 24h x 72h3 x 8h/semanaOutro20h/semanaPlantão 12h x 36h1 dia/semana
Figura 3 - Respostas à questão 5: Qual o seu horário atual de trabalho na Polícia?
As escalas de trabalho variam bastante, de acordo com o setor e a categoria profissional. Os setores administrativos e de diretoria adotam o horário comercial, com expediente de 40 horas semanais; os profissionais das áreas de Óbitos e Necropsia cumprem, em sua maioria, plantões de 24 horas, com descanso de 72 horas. Há ainda outras fórmulas, como a de três jornadas de 8 horas, mais comum nos laboratórios. Mas, como veremos no capítulo seguinte, a escala formal nem sempre é condizente com o trabalho real. Por exemplo: os técnicos de necropsia e os peritos da Necropsia e Clínica Médica comparecem ao serviço uma vez por semana, fazendo rodízio aos domingos. Os peritos aparecem também em outros dias para resolver laudos pendentes. A vinculação formal com o IML, porém, indica escalas de 24h por 72h para os técnicos, e 40 horas semanais para os peritos. As respostas nos questionários, portanto, podem camuflar interpretações variadas: trata-se do horário prescrito, do horário acordado informalmente ou do horário efetivamente trabalhado?
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17,6%12,5%30,9%17,6%21,3%
IV.2 Informações pessoais
Quase 70% dos profissionais que responderam ao questionário têm mais de 40 anos de idade, e nenhum tem menos de 31 anos. Esta informação, aliada à que se refere ao tempo de serviço, evidencia que os funcionários do IML, em sua grande maioria, são profissionais de meia idade e experientes no trabalho.
31 a 35anos36 a 40anos41 a 45anos46 a 50anos51 ou maisanosDistribuição por idade
Figura 4 - Respostas à questão 6: Qual é a sua idade?
Na divisão entre homens e mulheres, predomina o sexo masculino. A grande diferença se dá nas categorias de auxiliar e técnico de necropsia, cujas funções exigem grande esforço físico, e por isso são assumidas majoritariamente por homens. As mulheres trabalham como peritas nos setores de Necropsia e Clínica Médica, e têm bastante presença nos laboratórios, nos setores administrativos e na gestão institucional.
66
Distribuição por sexoMasculino74%Feminino26%
Figura 5 - Respostas à questão 7: Qual é o seu sexo?
São brancos 51,5% dos funcionários que responderam à questão 8, "Qual a cor da sua pele?". Os que se definem de cor parda são 38,2%; os de cor preta são 9,6%; os de cor "amarela ou indígena" constituem apenas 0,7%.
A questão 9 visava saber a situação conjugal (não necessariamente o estado civil) dos profissionais no momento da pesquisa, e chegou aos seguintes resultados: 60,3% se declararam casados(as) ou "companheiros(as)"; 19,9% separados(as); 18,4% solteiros(as); e 1,5% viúvos(as). Este foi o maior percentual de pessoas sem parceiros entre todos os órgãos da Polícia pesquisados pelo Claves.
A grande maioria dos profissionais possui filhos: 78,8%. A questão 10 perguntava também o número de filhos. Cerca de 33,3% têm um filho; 41,7%, dois; 14,8%, três; 7,4%, quatro; e 2,7%, mais de quatro.
"Você pratica alguma religião" era a questão 11. "Sim, freqüentemente" responderam 35,3%; "Sim, às vezes", 42,6%; e "Não", 22,1%.
67
16,2%8,8%22,1%18,4%23,5%5,9%3,7%1,5%
1ºgrauincompl.1ºgraucompl.2ºgrauincompl.2ºgraucompl.superiorincompl.superiorcompl.pós-grad.outraEscolaridadeFigura 6 - Respostas à questão 12: Qual a sua escolaridade?
O perfil da escolaridade dos funcionários reflete a diversidade de sua formação, o que sugere um alto grau de hierarquização entre as categorias profissionais. Não é difícil visualizar as três principais categorias, tomando por base a escolaridade mínima requisitada a cada uma delas. O expressivo contingente de profissionais com pós-graduação traduz o envolvimento acadêmico dos peritos legistas, pois muitos deles trabalham como professores em universidades. Representam também a maioria dos que responderam ter curso superior completo. Entre os 38,3% que completaram o ensino médio (2º grau) e iniciaram o ensino superior, estão os técnicos de necropsia, cuja formação mínima é justamente o ensino médio. Não foi raro, nas entrevistas e relatos informais, saber da situação de técnicos que abandonaram o curso universitário pela impossibilidade de conciliá-lo com a carga horária do IML e de serviços de segurança privada (experiência muito comum, como veremos). Por fim, representados entre os 18,4% dos funcionários que não completaram o ensino médio, estão os auxiliares de necropsia, a base da hierarquia do IML, tanto em formação quanto pela natureza braçal e desvalorizada de seu serviço.
Considerando que a conclusão do ensino fundamental é requisito básico no concurso de auxiliar de necropsia, os 5,9% que declararam não terem esta formação devem ser funcionários antigos, recrutados quando o cargo ainda era chamado "servente de necropsia" e não havia concurso para preenchê-lo.
68
17,6%0,7%33,8%47,1%0,0%0,7%
IV.3 Informações socioeconômicas
Até 500501 a10001001 a15001501 a25002501 a4000Mais de4000Renda líquida na Polícia (em R$)
Figura 7 - Respostas à questão 13:
Qual foi aproximadamente sua renda líquida na Polícia no último pagamento,
incluindo gratificações regulares?
Oito em cada dez funcionários do IML não ganham mais de 1.500 reais mensais, sendo que mais de um terço ganham no máximo mil reais, incluindo gratificações. Levando-se em conta a informação de que 69,6% sofrem descontos em seus salários8, e de que mais da metade tem a responsabilidade de ser o único provedor da renda familiar9, compreende-se a importância dos trabalhos externos à Polícia para a complementação de sua renda.
De fato, o aporte financeiro dos trabalhos fora da Polícia produz um substantivo crescimento da renda familiar.
8 Questão 14: Seu salário na Polícia tem algum tipo de desconto (empréstimo, pensão alimentícia ou outro)?
9 Respostas à questão 15: Quantas pessoas contribuem com a renda familiar (incluindo você)?: Uma - 52,3%; Duas – 37,9%; Três – 7,6%; Quatro – 2,3%; Cinco ou Mais – Zero.
69
12,6%11,9%31,1%30,4%14,1%0,0%
Até 500501 a 10001001 a 15001501 a 25002501 a 4000Mais de4000Renda familiar líquida (em R$)
Figura 8 - Respostas à questão 16:
Qual foi aproximadamente sua renda familiar no último mês,
somando o rendimento de todas as pessoas que moram com você?
A questão 17 permitiu conhecer a distribuição das despesas familiares dos policiais do IML.
Destinação da renda familiar (em R$)0%20%40%60%80%TransporteMedicamentosMoradiaMais de 500De 201 a 500De 101 a 200Até 100Nada
Figura 9 - Respostas à questão 17: Quanto da renda familiar é gasto por mês com...
A contração de dívidas e o compromisso com pagamentos a prestações pesam no orçamento familiar dos pesquisados, exigindo de 29,5% deles empenhos acima de 500 reais por mês, e de 28,7% gastos de 201 a 500 reais.
70
É grande o investimento em educação privada (própria e dos filhos): 79,2% têm algum gasto neste item. Ele ultrapassa os 200 reais mensais para 20,8% dos pesquisados, e os 500 reais mensais para 17,6%.
Alimentar-se também é dispendioso, pois 53,9% dos policiais do IML responderam gastar entre 201 e 500 reais com comida, e 24,2% chegam a dispor de mais de 500 reais mensais para alimentar a família.
Transportes e medicamentos representam, em média, menos gastos. Ainda assim é digna de nota a proporção de pesquisados que precisam empenhar mais de 200 reais mensais em transporte (incluindo gastos com combustível): 34,1%.
A maior fatia do orçamento familiar destina-se aos custos de moradia, que incluem condomínio, luz, gás, telefone, água. Para 34,4% dos pesquisados, morar custa mais de 500 reais mensais, e para 31,3% custa de 201 a 500 reais.
A questão 18 esclarece que 47,1% dos profissionais moram em residências próprias quitadas e 14,5% estão pagando o financiamento de sua casa. Estima-se, desta forma, que cerca de 60% dos profissionais do IML têm ou caminham para ter moradia própria, índice bem menor do que a média da Região Metropolitana do Rio de Janeiro: 76% (IBGE,1999). Em situação mais instável, há 17,4% vivendo de aluguel e nada menos que 14,5% morando "de favor" (situação de moradia classificada como "cedida" pelo IBGE, que retrata índice bem menor no Rio de Janeiro: apenas 6,7%). Disseram viver em "outras situações" 6,5%, uma proporção também muito maior do que a obtida pelo IBGE, que ficou em 0,7%. Infelizmente os questionários não possibilitaram saber que "outras" situações seriam estas.
O número de cômodos e o número de habitantes da casa complementam as informações sobre moradia10. Em média, moram 3 ou 4 pessoas (55,4%) em casas de 5 ou 6 cômodos (54,3%). Ocupando possivelmente o conhecido "quarto-sala-banheiro-cozinha" (4 cômodos) vivem 13,8% dos respondentes, e 5% em casas com menos de 4 cômodos. Residem sozinhos 8,8% deles, e com mais uma pessoa 17,5%. No outro extremo, 18,3% vivem em casas com 5 pessoas (10,2%) ou mais, e 23,8% dispõem de 7
71
13,1%24,1%42,3%20,4%
cômodos (10,1%), 8 (8,7%) ou até mais. Obviamente, a desigualdade social do país não nos permite supor que o número de cômodos seja sempre proporcional ao número de pessoas.
Até 1 horaEntre 1 e 2horasEntre 2 e 3horasMais de 3 horasTempo gasto no transporte
Figura 10 - Respostas à questão 31:
Quanto tempo você gasta normalmente em transporte por dia,
para ir e voltar do trabalho? (somando a ida e a volta do trabalho)
É razoável o tempo gasto pela maioria dos funcionários do IML em transporte, considerando os padrões dos grandes centros urbanos. Mas 33,5% disseram ficar tempo demasiado em trânsito: 20,4% gastam mais de 2 horas e 13,1% gastam mais de 3 horas.
10 Respostas à questão 19: A casa em que você mora tem quantos cômodos?; e à questão 20: Na casa em que você mora vivem quantas pessoas no total?.
72
IV.4 Satisfação
A questão 34 procurou verificar o grau de satisfação dos profissionais quanto a diversos aspectos de sua vida pessoal. Os resultados foram os seguintes:
Grau de satisfação44,1%45,6%55,9%58,5%59,5%72,8%75,8%75,8%78,8%79,2%80,3%81,6%81,7%83,1%83,7%87,5%22,4%17,6%27,2%22,2%26,5%18,4%11,0%14,7%14,6%8,9%12,1%11,8%12,5%9,6%9,6%8,1%6,6%5,8%7,3%6,7%4,4%33,6%36,7%16,9%19,2%14,0%8,9%13,2%9,5%6,6%11,8%7,6%Padrão de vidaTempo para lazerBairroRealiz. profissionalVida socialFelicidadeVida sexualSaúdeFelicid. familiaresVida afetivaVida espiritualVida como um todoSituações difíceisCírculo familiarEducaçãoCapacid./ habilid.Muito satisfeito + satisfeitoNem satisfeito nem insatisfeitoInsatisfeito + Muito insatisfeto
Figura 11 - Respostas à questão 34: Indique seu grau de satisfação para cada um dos itens abaixo...
Os resultados estão apresentados em ordem decrescente de satisfação, e agrupam as alternativas "muito satisfeito" e "satisfeito", por um lado, e "insatisfeito" e "muito insatisfeito" por outro, ficando no meio a alternativa mais neutra: "nem satisfeito nem insatisfeito".
De um modo geral os funcionários do IML se manifestaram satisfeitos com a vida, ficando em mais de 80% o grau de satisfação com cinco itens: "Suas capacidades e habilidades", "A educação que recebeu", "Seu círculo familiar", "Sua capacidade de
73
reagir a situações difíceis", "Sua vida como um todo" e "Sua vida espiritual"11. Mostram-se, portanto, seguros quanto às próprias habilidades e capacidades e avaliam positivamente suas relações familiares, refletidas também no item sobre a "educação recebida", cuja interpretação pode incluir a educação formal, mas certamente também se baseia na educação recebida "em casa".
Contudo, "A felicidade de seus familiares" não aparece tão a contento, resultado que pode revelar o desejo natural, referido em depoimentos, de proporcionar uma vida melhor para a família. Também pode apontar para problemas pessoais dos membros da família. Apesar de ainda mostrar um bom grau de satisfação, este item está situado um pouco abaixo dos primeiros, em um grupo que concentra mais de 20% de "nem satisfeito nem insatisfeito" e "insatisfeito" + "muito insatisfeito". Estão também neste grupo: "Sua vida afetiva", "Sua saúde", "Sua vida sexual" (com 13,2% de insatisfação) e "Sua felicidade". Curioso que, apesar de 81,6% se declararem satisfeitos com a vida como um todo, apenas 72,8% se vêem felizes. Provavelmente os itens que vêm abaixo, mais marcados pela insatisfação, impeçam uma percepção maior de "felicidade".
É fácil identificar, no gráfico, uma ruptura entre o item "Sua felicidade" e o item "Sua vida social": de 72,8% de satisfação, as respostas caem para 59,5% de satisfação. Daí para baixo, os itens têm dois traços em comum: referem-se à vida social e/ou ao trabalho. Fecham a série, com graus de satisfação abaixo da metade das respostas, os itens "O tempo disponível para o lazer" (o maior grau de insatisfação: 36,7%) e "Seu padrão de vida (o que você pode comprar ou fazer)" (o menor grau de satisfação: 44,1%).
Mas a expectativa é de melhora. Na questão 3712, o "padrão de vida" é o item visto com mais otimismo em relação ao futuro: 76,3% acham que ele vai melhorar; 18,5% que vai ficar igual; e só 5,2% que vai piorar. Em seguida vêm a "vida profissional", com 70,5% de expectativa de melhora; a "vida pessoal", com 69,7%; a "vida familiar", com 65,9%; a "condição de trabalho", com 58,6%. Como se vê, parece ser mais fácil imaginar uma vida profissional melhor no futuro, talvez pela perspectiva
11 No gráfico, os itens estão descritos com títulos resumidos. No texto, apresento as alternativas exatamente como o questionário.
12 Questão 37: Você acha que no futuro você vai ter um(a): Vida Pessoal; Vida familiar; Vida profissional; Padrão de vida; Condição de saúde; Condição de trabalho... Alternativas: Melhor; Igual; Pior.
74
de capacitação pessoal e de melhor equação entre o emprego público e os outros trabalhos complementares, do que esperar que as condições de trabalho melhorem.
Por último aparece a "condição de saúde", com 47,4% de expectativa de melhora. O futuro traz envelhecimento, e este normalmente é associado a uma piora nas condições de saúde. Nesse caso, o otimismo geral dá-se por satisfeito em esperar uma saúde "igual" à de hoje (40,6%), enquanto 12% acham que sua saúde será pior no futuro.
IV.5 Trabalho e saúde
Interessante notar que há uma separação entre as expectativas de futuro quanto à vida profissional e quanto às condições de trabalho. Estas dificilmente melhorarão para quase a metade dos pesquisados, já que, ao longo do tempo em que estão na Polícia, vêm piorando: 46,7% dos profissionais afirmam que a condição de trabalho piorou; 29,9% que continua igual; e só 23,4% que melhorou13.
Na questão 61 pediu-se que os profissionais avaliassem, usando notas de 0 a 10, os equipamentos e instrumentos que utilizam em seu trabalho. Os resultados foram muito negativos.
13 Respostas à questão 39: Você considera que a condição de trabalho do policial ao longo do tempo: Melhorou; Continua igual; Piorou.
75
0%10%20%30%40%50%60%012345678910Uniforme0%10%20%30%40%50%012345678910Material de necropsia
0%10%20%30%40%50%012345678910Material para segurança biológica
Figura 12 - Respostas à questão 61:
Dê uma nota de 0 a 10 para o estado dos seguintes
equipamentos de trabalho utilizados por você atualmente
Nos três quesitos, mais de 40% dos profissionais atribuíram a nota mais baixa possível à qualidade dos materiais. O material de necropsia teve a pior avaliação, com nota média de 1,9 (44,6% de notas 0 contra 1,1% de notas 10). O uniforme recebeu em média 2,1 (53,1% de notas 0 e 4,1% de notas 10), e o material para a segurança biológica (luvas, máscaras, óculos etc.) em média 2,5 (43,7% de notas 0 e 3,9% de notas 10).
Apesar da precariedade dos materiais e das condições de trabalho, os profissionais afirmam que entrar na Polícia significou uma melhora em sua vida como um todo: 65% acham que a vida melhorou desde que estão na Polícia; 30,7% que
76
continua igual; e apenas 4,4% que piorou14. Mas as condições de trabalho os fariam repensar, se pudessem escolher recomeçar a vida profissional: 26,3% escolheriam "exatamente a mesma carreira", mas 53,4% só a repetiriam "desde que ela possibilitasse melhores condições de trabalho", e 20,3% escolheriam outra carreira (sendo 7,5% "uma atividade parecida, mas fora da Polícia" e 12,8% "outra carreira completamente diferente")15.
14 Respostas à questão 38: Você considera que, depois de entrar para a Polícia, sua vida: Melhorou; Continua igual; Piorou.
15 Respostas à questão 40: Se pudesse começar de novo sua vida profissional, você escolheria...
77
Formação
A formação inicial oferecida pela Polícia foi avaliada em suas vertentes prática e teórica, com os seguintes resultados:
Atividades teóricas: Tempo42,6%57,4%SuficienteInsuficienteAtividades teóricas: Adequação35,2%64,8%AdequadasInadequadas
Atividades práticas: Tempo64,5%35,5%SuficienteInsuficienteAtividades práticas: Adequação54,9%45,1%AdequadasInadequadas
Figura 13 - Respostas à questão 42:
Na sua opinião, como foi a formação inicial oferecida para você ao entrar na Polícia?
A parte teórica da formação inicial proporcionada pela Polícia Civil foi mais bem avaliada do que a prática, podendo ainda melhorar em relação ao tempo. As atividades práticas foram consideradas insuficientes e inadequadas pela maioria.
Depois dessa formação inicial, oferecida pela Academia de Polícia (Acadepol), poucas vezes os profissionais do IML tiveram a oportunidade de uma nova capacitação: 35,2% afirmaram que "nunca foram oferecidas" outras capacitações; 53,3% disseram que isso aconteceu "poucas vezes"; e apenas 11,4% tiveram outras capacitações "muitas vezes" (5,7%) ou "sempre" (5,7%)16.
As outras capacitações experimentadas na Polícia foram as seguintes: Palestras (36,3%); Curso técnico de curta duração (30,6%); Treinamento prático (26,8%); Curso
16 Respostas à questão 43: Depois da formação que você recebeu ao entrar na Polícia, outras capacitações foram oferecidas?
78
de especialização e aprimoramento (17,1%); palestras com treinamento prático (14,5%); e Curso de formação superior (12,3%)17.
Muitos investem em cursos por conta própria, fora da Polícia, para aprimorar seu trabalho: 41,9% afirmaram ter feito ou estar fazendo curso universitário; 40,7% fizeram ou estão fazendo curso de curta duração; 21% fizeram ou estão fazendo curso de pós-graduação; e 17,6% fizeram ou estão fazendo outro curso por conta própria18.
O desejo de aprimorar a qualificação profissional foi manifestado pela maioria dos profissionais, que nem sempre têm tempo ou condições financeiras para investir em cursos de formação. A questão 47 quis saber isto: "Se você tivesse condições, você faria algum curso para completar sua formação?", oferecendo a seguir alternativas de cursos: 71,8% fariam uma qualificação ou especialização; 61,5% fariam mestrado ou doutorado; 61,1% fariam um curso técnico de curta duração; e 52,7% fariam curso superior.
Essa demanda por uma formação mais adequada reflete-se também no fato de um em cada três profissionais (33,6%) afirmar que o trabalho que exerce é diferente daquele para o qual foi treinado19.
Jornada de trabalho e férias
Quanto à jornada de trabalho, é grande o percentual de profissionais que trabalham além do horário estabelecido. Tomando por base "os últimos meses", 31,7% tiveram que trabalhar "muitas vezes" além do expediente ou plantão; 19,2% trabalharam "algumas vezes" além do horário; 12,5% "poucas vezes"; e 31,7% não precisaram trabalhar além do horário estabelecido20.
O principal motivo que os leva a trabalhar além do horário é a necessidade de "concluir, por vontade própria, uma tarefa importante" (36,3%). "Ordens superiores" foi
17 Respostas à questão 44: Se você teve outra capacitação na Polícia, ela foi de que tipo?
18 Respostas à questão 46: Você fez ou está fazendo algum curso fora, por conta própria, visando melhorar o seu trabalho na Polícia?
19 Respostas à questão 48: O trabalho que você exerce é aquele para o qual foi treinado?
20 Respostas à questão 49: Nos últimos meses, você trabalhou na Polícia além do seu horário estabelecido?
79
3,7%20,0%18,5%8,9%48,9%
o motivo alegado por 12,4% dos profissionais; e "outros motivos" foi a resposta de 16,8%21.
Os profissionais que atuam em regime de plantão de 24 horas (peritos, auxiliares e técnicos de necropsia) estão sujeitos à sobrecarga de trabalho, pois boa parte deles tem outro emprego fora da Polícia, que os obriga a emendar os plantões em outro trabalho, sem descanso.
SempreaconteceMuitas vezesaconteceÀs vezesacontecePoucas vezesacontece NuncaaconteceTrabalho, sem folga, depois de plantão
Figura 14 - Respostas à questão 50:
É comum você sair de um plantão e realizar outra atividade policial,
de investigação ou de segurança, imediatamente,
sem descanso algum (dentro ou fora da Polícia)?
O trabalho noturno faz parte da rotina de, pelo menos, 54,7% dos trabalhadores do IML22. As férias, apesar da sobrecarga e do desgaste vivenciados no trabalho, não são gozadas com regularidade.
21 Respostas à questão 51: Considerando os últimos seis meses, qual o principal motivo que o levou a trabalhar, na Polícia, além de seu horário estabelecido?
22 Respostas à questão 52: Durante quanto tempo você já trabalhou em horário noturno na Polícia (entre 18:00 e 06:00 horas)?. Resultados: Nunca trabalhei: 30,5%; Cerca de 1 mês: 5,5%; De 2 a 6 meses: 4,7%; De 7 a 11 meses: 4,7%; Mais de 1 ano: 25,8%; Sempre trabalhei: 28,9%.
80
15,7%43,3%9,7%31,3%
Há até 1 ano atrásHá 2 anos atrásHá 3 anos ou maisNunca tireiFérias mais recentes
Figura 15 - Respostas à questão 53:
Quando você tirou férias na Polícia pela última vez?
Outras atividades
Nada menos do que 72,7% dos profissionais do IML que responderam ao questionário desempenham regularmente outra atividade remunerada23. Destacam-se os 21,1% que declararam trabalhar como seguranças para o setor privado (é o caso, principalmente, dos auxiliares e técnicos de necropsia) e os 42,5% que disseram trabalhar em "outro" ramo de atividade, ou seja, em nenhum daqueles que o questionário oferecia como alternativas. Houve ainda 4,7% que disseram atuar no comércio e 4,7% como taxistas24.
O grande número de respostas "Outro" abarca a quase totalidade dos peritos legistas (de todos os que conheci, apenas uma disse dedicar-se com exclusividade ao IML) e dos técnicos de laboratório policial, que têm especialização ou curso superior. Das 54 respostas "Outro", preenchidas livremente pelos profissionais, 22 se referiam à prática de medicina, odontologia ou outro serviço de saúde; outros 6 disseram trabalhar em laboratórios; e 13 se declararam professores.
23 Respostas à questão 54: Além de trabalhar na Polícia, você exerce com regularidade outra atividade remunerada, com ou sem vínculo empregatício?
24 Respostas à questão 55: Qual é o ramo dessa atividade?
81
A dedicação ao outro trabalho consome mais de 20 horas semanais para 40,2% dos pesquisados. Dedicam de 11 a 20 horas 18,9%; e menos de 10 horas 13,4%25. A maioria desempenha seu segundo emprego em horário diurno (31,7%) ou alternando, de acordo com o dia da semana, horários noturnos e diurnos (34,1%). No primeiro caso estão aqueles que trabalham no IML apenas um ou alguns dias da semana, como os peritos. No segundo caso se encontram os auxiliares e técnicos de necropsia que trabalham fazendo segurança privada, um serviço que costuma exigir horários diurnos e noturnos. Declararam trabalhar apenas no horário noturno 6,3%26.
O salário complementar, obtido na atividade externa ao IML, é a principal fonte de renda para um terço dos funcionários (33,8%). Outros 32,3% disseram ganhar melhor no IML do que em sua outra atividade, e 6,2% recebem valor igual nos dois trabalhos27.
Riscos
A exposição a bactérias e microorganismos no exercício profissional faz com que 92,5% dos profissionais do IML reconheçam que existe risco biológico em seu trabalho. A violência psicológica também é um risco para a maioria dos pesquisados: 55,3% percebem o risco de sofrer ameaças e humilhações no exercício profissional. Houve 35,1% que disseram correr "outros" riscos na profissão28, especificando-os: a exposição a Raio-X (radiação ionizante) foi mencionada em 5 questionários; acidentes em 4 (como cortar-se e haver um incêndio); o risco do contato com produtos químicos em 4; e a exposição à violência social, pelo fato de serem policiais, em 3 (assaltos ou "represália pela identificação").
Apesar de já haver a opção "risco biológico" no questionário, muitos se deram ao trabalho de citá-lo também no item "Outros", falando genericamente de "doenças", explicitando-as ("meningite", "tétano") ou sintetizando o quadro amplo de riscos biológicos como "contaminação geral".
25 Respostas à questão 56: Quantas horas por semana, em média, você dedica a essa outra atividade?
26 Respostas à questão 57: Essa atividade é exercida em que período do dia?
27 Respostas à questão 58: Nessa outra atividade você ganha... Alternativas: Valor inferior ao que recebe na Polícia; Valor igual ao que recebe na Polícia; Valor superior ao que recebe na Polícia.
28 Respostas à questão 65: Quais os riscos que você corre no seu exercício profissional?; 65h. Sofrer violência psicológica; 65m. Contaminação por bactérias, microorganismos (risco biológico); 65n. Outro.
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Duas pessoas citaram a "necropsia" como um risco em si, outra referiu-se ao "odor" como um risco. Foi citado ainda o risco de ter "hérnia", devido ao esforço físico, e um risco estrutural assim justificado: "prédio precisa de obras".
A vivência de riscos é uma experiência "constante" para 54,4% dos profissionais que responderam ao questionário. Identificaram os riscos como "eventuais" 42,4%, e 3% afirmaram não haver nenhum risco na profissão29.
79,9%43,1%49,6%14,2%35,4%26,4%3,7%13,8%14,0%2,2%7,7%10,1%MuitoRegularPoucoNenhumRiscos de ser policialNo transporte coletivoNas folgasNo exercício de outrasatividades
Figura 16 - Respostas à questão 69: Quanto risco o policial corre nos seguintes momentos?
"Ser policial" implica em um risco social que extrapola as funções profissionais. Os códigos extremamente violentos do crime organizado do Rio de Janeiro determinam que o policial é permanentemente um inimigo, ainda que esteja fora de serviço. Se sua identidade é descoberta em um assalto, por exemplo, são grandes as chances de execução sumária por parte dos criminosos.
Este risco difuso e permanente é vivenciado também pelos policiais do IML, que apesar de não desempenharem um trabalho repressivo no combate ao crime, têm carteira policial e sentem medo de ter essa identidade revelada. É grande a percepção do risco que correm no transporte coletivo, para 79,9% dos profissionais.
29 Respostas à questão 67: Como você analisa o risco que corre na sua atividade atual na Polícia?
83
45,8%35,1%11,5%7,6%42,7%31,3%13,7%12,2%
Boa parte dos peritos evita andar com a carteira policial, até porque a maioria "não se sente" policial, como revelaram as entrevistas. Já os técnicos e auxiliares de necropsia manifestam mais afinidade com a identidade policial, sendo que muitos deles portam carteira profissional e andam armados. Isto gera a percepção de riscos durante as folgas (43,1% percebem "muito" risco nesses momentos) e, mais ainda, durante o desempenho das outras atividades profissionais (49,6%), que costumam se concentrar na área da segurança privada. Poucos são os profissionais que não percebem risco em nenhuma dessas situações.
Carga de trabalho e estresse
As percepções sobre a carga do trabalho se refletem nos resultados da questão 74, que se propôs a averiguar, também, uma possível associação causal entre sobrecarga de trabalho e estresse. A apresentação das questões foi feita assim: "Com que freqüência uma das situações abaixo ocorre com você?". A seguir eram sugeridas situações:
FreqüentementeÀs vezesRaramenteNunca ou quasenuncaVocê tem que fazer suas tarefas de trabalho com muita rapidez?FreqüentementeÀs vezesRaramenteNunca ou quasenuncaVocê tem que trabalhar intensamente (isto, é, produzir muito em pouco tempo)?
84
23,7%38,9%32,1%20,6%13,7%33,6%19,8%17,6%
FreqüentementeÀs vezesRaramenteNunca ou quasenuncaSeu trabalho exige esforço demais de você?
FreqüentementeÀs vezesRaramenteNunca ou quasenuncaSeu trabalho lhe causa estresse intenso?
Figura 17 - Respostas à questão 74
As três primeiras questões são complementares, calcadas em condições que caracterizam a sobrecarga de trabalho: o grande volume de tarefas, o esforço excessivo empenhado e a velocidade demandada para cumpri-las. Os resultados foram coerentes entre si e apontam para situações freqüentes de sobrecarga, que seriam causadoras de "estresse intenso" entre os profissionais. O termo estresse, por sinal, é bastante utilizado por eles para descrever as conseqüências do trabalho em sua vida pessoal. Quando se fala em repercussões do trabalho na saúde, porém, o estresse não é tão mencionado, pois a
85
interpretação de "saúde" concentra-se nos aspectos físicos.
Com o objetivo de identificar sintomas físicos e mentais de estresse, desgaste mental e depressão, foram colocadas diversas perguntas a esse respeito, obtendo os seguintes resultados (percentual de respostas "sim", em ordem decrescente)30:
• É capaz de desempenhar um papel útil em sua vida? — 60,1%
• Sente-se nervoso(a), tenso(a) ou agitado(a)? — 39,1%
• Dorme mal? — 29,3%
• Tem se sentido triste ultimamente? — 21,7%
• Tem sensações desagradáveis no estômago? — 21,7%
• Sente-se cansado o tempo todo? — 21%
• Tem dores de cabeça freqüentemente? — 21%
• Você se cansa com facilidade? — 19,6%
• Tem má digestão? — 18,1%
• Encontra dificuldade para realizar com satisfação suas atividades diárias? — 15,9%
• Assusta-se com facilidade? — 15,2%
• Tem falta de apetite? — 12,3%
• Tem dificuldade de pensar com clareza? — 12,3%
• Tem dificuldade no serviço (seu trabalho é penoso, lhe causa sofrimento)? — 11,6%
• Tem dificuldade para tomar decisões? — 10,1%
• Tem chorado mais do que de costume? — 8%
• Tem perdido o interesse pelas coisas? — 8%
• Tem tremores na mão? — 5,8%
• Você se sente uma pessoa inútil, sem préstimo? — 4,3%
• Tem tido a idéia de acabar com a vida? — 1,4%
30 Questão 98: Dos sintomas físicos e mentais abaixo, quais ocorrem com você atualmente?
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A forma como é apresentada essa escala me desagrada em alguns pontos — as perguntas de conteúdo quase idêntico entre si e a formulação não homogênea das questões —, mas a utilização de algumas escalas padronizadas foi uma opção da pesquisa do Claves, por possibilitar a comparação entre os resultados de diferentes sujeitos e grupos sociais.
A primeira pergunta, que obteve o maior índice de respostas positivas, tem um caráter diferente das outras, porque não trata de "sintomas" e porque propõe uma assertiva positiva, enquanto as demais falam de "males". Deve, portanto, ser lida de forma inversa: 34,1% responderam "não", ou seja, que não se sentem capazes de desempenhar papéis úteis na vida. É um resultado expressivo, mas pode-se creditar parte dessas respostas a uma eventual má compreensão da pergunta, devido à inversão semântica nela contida (no questionário esta pergunta não abria a série, sendo apresentada no meio das outras).
Divido os resultados em três grupos, para nossa reflexão acerca dos sintomas físicos e mentais que acometem esses profissionais. No primeiro deles estão os sintomas declarados por mais de 20% dos respondentes: nervosismo, tensão e agitação foram relatados com bastante freqüência (39,1%), seguidos de problemas no sono (29,3%), tristeza, problemas estomacais, cansaço permanente e dores de cabeça freqüentes (todos em torno de 21%).
O segundo grupo reúne sintomas manifestados por entre 10% e 20% dos trabalhadores. O cansaço novamente surge, com quase 20%, e também problemas digestivos e de apetite, de raciocínio, tensão (assustar-se com facilidade), dificuldade em ter satisfação e sofrimento no trabalho.
O último grupo traz as respostas que alcançaram menos de 10%. De fato, são sintomas mais sérios de depressão e esgotamento físico e mental. Por este motivo, não se deve desconsiderar esses índices, pelo contrário: seria importante priorizar justamente os casos mais agudos de desgaste provocado pelo trabalho.
A penúltima pergunta funciona semanticamente como um contraponto à primeira: esta fala em ter um "papel útil" na vida, aquela em se sentir uma "pessoa inútil". A discrepância dos resultados (34,1% não se vêem desempenhando papéis úteis
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na vida, enquanto apenas 4,3% se consideram pessoas "inúteis") permite-nos concluir que há algo errado nessas respostas. A proposição positiva ("desempenhar um papel útil") no meio de frases com teor negativo deve ter gerado confusão interpretativa. Até porque 34,1% seria uma proporção muito alta de pessoas tão desesperanças a ponto de se sentirem inúteis, e isto deveria ser corroborado pelos outros dados, mas não é o que acontece.
Satisfação no trabalho
O ambiente de trabalho e as relações com os colegas e a chefia foram avaliados pela questão 75, por meio de afirmações:
Existe um ambiente calmo e agradável onde você trabalha18,9%34,8%20,5%25,8%ConcordototalmenteConcordo maisque discordoDiscordo maisque concordoDiscordototalmente
No trabalho, as pessoas se relacionam bem umas com as outras28,4%40,0%25,4%6,2%ConcordototalmenteConcordo mais quediscordoDiscordo mais queconcordoDiscordo totalmente
Você pode contar com o apoio dos seus colegas de trabalho35,1%38,2%20,6%6,1%ConcordototalmenteConcordo mais quediscordoDiscordo mais queconcordoDiscordototalmente
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Se você não estiver num bom dia, seus colegas compreendem31,3%42,0%22,1%4,6%Concordo totalmenteConcordo mais quediscordoDiscordo mais queconcordoDiscordo totalmente
Você se relaciona bem com seus chefes/ diretores56,1%28,8%9,8%5,3%Concordo totalmenteConcordo mais quediscordoDiscordo mais queconcordoDiscordo totalmente
Você gosta de trabalhar com seus colegas35,6%8,3%0,8%55,3%ConcordototalmenteConcordo mais quediscordoDiscordo mais queconcordoDiscordototalmente
Figura 18 - Respostas à questão 75
As relações com colegas e chefes foram, no geral, bem avaliadas. Mais de 90% dos funcionários disseram gostar de trabalhar com os colegas. Estes demonstram apoio e compreensão (ambos com 73,3% de concordância). A relação com os chefes também é considerada boa pelos pesquisados (84,9% e o maior índice de "concordo totalmente").
Quando as proposições saem do âmbito do "você" para falar "das pessoas", em geral, a concordância cai: 68,4% concordam que a relação entre as pessoas é boa, ou seja, 31,6% discordam. Estes parecem querer dizer: "Eu me relaciono bem com os colegas e chefes, mas as relações entre as pessoas, aqui, não são tão boas".
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A pior avaliação ficou por conta do ambiente de trabalho, que é "calmo e agradável" para apenas pouco mais da metade dos pesquisados (53,7%), sendo que 20,5% discordam totalmente disso.
A satisfação dos profissionais quanto às relações hierárquicas também foi aferida pela questão 41:
Grau de satisfação no trabalho66,2%77,0%78,0%20,6%18,5%17,6%13,2%4,5%4,4%Hierarquia superiorHierarquia inferiorHierarquia igualMuito satisfeito + satisfeitoNem satisfeito nem insatisfeitoInsatisfeito + Muito insatisfeto
Figura 19 - Respostas à questão 41: Em relação à carreira policial, indique seu grau de satisfação...
O "Relacionamento com pessoas de igual nível hierárquico" é o item que apresenta maior grau de satisfação, quase igual ao que se refere a "pessoas de nível hierárquico inferior". Existe diferença de satisfação entre estes e as relações com pessoas de hierarquia superior.
A questão 71 propôs que os profissionais atribuíssem notas de 0 a 10 para sua satisfação em relação a diferentes aspectos do trabalho.
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0%5%10%15%20%25%30%012345678910Volume de trabalho
0%5%10%15%20%25%012345678910Salário

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